A roda e a fortuna.

Salve traça, mais um conto!
Este mês cumpri a meta de quatro publicações. Não que exista uma ligação entre qualidade e quantidade, mas acredito que a prática é muito necessária, logo, estabelecer uma meta é uma das maneiras de me forçar a fazer algo. Infelizmente ter prazos e pressão é uma necessidade que já internalizei. Enfim...


Roda e fortuna

Para Luci  Rosa,  motivadora profissional.



Na agenda do pesadelo há vida na dor, a despeito da dor. Mesmo o prazer, a felicidade e todo o resto, quando apregoados na cruz cotidiana, fazem o amanhecer de um escuro noturno. Difícil? Não, nada mais que viver; e isto não é o mais simples de tudo?

O dever de deslizar pela existência, sem alarde,  sem excessos.

Ela escorrega, vento no rosto, desliza leve pelo escorregador. O vento a sopra, calmo feito avô. Seus pesinhos fincam na areia pisada, batida, dura. Levanta-se rápida, corre e sobe novamente. Do alto, não contempla, se lança com a certeza da carícia do vento. Sorrir é desnecessário. Feliz? Talvez. Inconsciente? Sim. Tais memórias: o chão de areia do parquinho, o odor úmido de manhã recém nascida, o ranger do velho escorregador, cada imagem do passado cobra seu dízimo; depressão.

Ela perdeu os movimentos aos 15, eu a olhava desde os 12. Semana passada fez 16; não houve festa. Sou amigo da família. Aquele vizinho de caráter inquestionável, que trabalha a valer, orgulhoso de suar mais que os outros. Bom desenhista que sou, desenhara minha imagem de cidadão exemplar. Hoje colho os frutos de meu traço simples, de minhas cores ternas, de minha forma cartunesca. Sou bom, confiável e inofensivo, mesmo que treine meu sorriso no espelho.

Já há um mês tenho cuidado da jovem Maria, não gosto de chamá-la Mariazinha. Embora a menina sofra de algumas deformidades, fruto do acidente, ainda conserva a essência da beleza que desfilava brincando no parquinho em frente de casa. Sabe como é, tenho muito tempo livre,  trabalho no turno noturno. Sem pensar duas vezes me ofereci para passar as tardes com a garota, para ajudar a família, ainda abalada. Ajudar ao próximo, não ser egoísta, estas coisas todas. Venho trabalhando em virtudes ultimamente. Eles ainda sofrem com o destino imposto à Maria, mas precisam trabalhar, quase todos precisamos. Deus sabe o que faz, assim lhes digo, e não tenho dificuldades em conter o riso. Acaso e aleatoriedade, um carro em alta velocidade e lá se vai a vida da menina. Resultado: a infante, agora decrépita, arrasta consigo a família em marcha de lesma que ora por sal.

Bicicleta nova, ainda protegida da queda pelas rodinhas. Papai correndo atrás, segura no selim, concede assim segurança e auto confiança, ingredientes necessários às primeiras pedaladas de qualquer garotinha. Ela consegue, todos conseguem, desde que preencham os requisitos. Ela não sorri, é desnecessário. O vento, ainda terno, lhe acaricia, um toque, agora passado, que custa não doer. Tudo se repete na roda da fortuna.

Há um mês nos divertimos pela tarde, ao menos aquele de nós que ainda consegue. Já refleti sobre o que fazemos, não sou insensível, mas veja bem, não há razão para arrependimentos, uma vez que  não consigo desenhar sorrisos em sóis alheios. Na primeira vez que a toquei ela chorou; calada. Eu não sinto falta de sua fala, lhe disse isso. A lágrima fez família. Mais de uma vez, quando sua mãe a deixava aqui em casa, ela chorou. É felicidade, eu dizia. Ela gosta muito de você, respondia a mãe apressada, e atrasada, novamente. Ríamos, sem alegria qualquer. Enfim sós, eu e Maria, matava vontades que há muito cresciam em mim. Em flor, o que é regado desabrocha. Eu a vejo verdadeiramente, e ela é mesmo linda. Traço geograficamente em seu corpo a imagem que a habita, aquém das imperfeições pelo destino talhadas.

Prazer na dor, a despeito da dor.  Ela não chora mais. Por dentro da carne ela vê, refletida em meus olhos, sua beleza ideal. Será? Sim, claro. Sua imagem, que com tanto esmero venho desenhando. Há cumplicidade entre nós. Nos amamos. Ela não precisa dizer. Ela não precisa se mover. Ela não precisa agir. Ela existe, e eu faço o suficiente por nós dois.

Ela quer voar, permanecer no percurso, cada vez mais alto, do balanço. Todo o corpo se impunha em dar velocidade à brincadeira. Seus cabelos dançam ao toque do vento, que frio, lhe seca o suor da testa. Ela sorri, é desnecessário. Memória, refúgio que não concede fuga. As tardes que ela não gostaria de lembrar, são as impossíveis de esquecer. A roda continuamente roda, seu movimento certeiro matou um futuro para adubar outro. Um carro, um atropelamento, uma tetraplégica, um destino dentro de um acaso.

Lá está ela, na cadeira de rodas em frente à sua casa, seu cabelo baila ao vento. Quanto de sua infância ela é capaz de lembrar? Será que ela se lembra dos tempos em que o vento era mais feliz? Tudo vai se apagar, mesmo as memórias? Creio. Às vezes penso que não deveríamos fazer o que fazemos. Mesmo eu sinto dores morais, mas, estranhamente, pareço senti-las em outro corpo, outro eu talvez. A certeza prática é que não sei cavalgar lágrimas alheias. Sigo, apenas, e é bom. A injustiça é divina.






Crédito: Imagem pertencente ao álbum, O Dobro de Cinco, de Lourenço Mutarelli.
Você pode conhecer o trabalho de Lourenço Mutarelli aqui.

2 comentários:

Remy Zombie disse...

Stephen King Feelings? rsrsrsrs

Estante Velha disse...

Neste não foi a intenção, como foi no da menina mentida, mas se lembrou algo de King está bom. :)
Estou fazendo um roteiro de quadrinhos que começa a narração: Ele estaria morto no final daquele dia. - Isso é bem King...