Números 6 [COMPLETO]- O divino cotidiano

Salve, traças,


Enfim a parte final de Números 6 - O divino cotidiano (leia aqui as outras edições). 
Aproveito esta última introdução para agradecer ao amigo Ito, a quem dedico a história. 

Download do zine: Números 6 - O divino cotidiano. 



Crédito da imagem: Pablo Auladell - O paraíso perdido


Números 6 - A peregrinação

 Salve, traças,

Esta é a segunda parte da história do meu sexto fanzine Números (leia aqui as outras edições). Relendo-a para publicar aqui, percebo que talvez apresente um dos personagens mais desprezíveis que já criei. Enfim, leiam e opinem.  Outra coisa, por enquanto o título parece ser "Revelações por 200 reais", mas estou aceitando sugestões. Sei que o conto é longo, mas gosto de pensar que contém a menor quantidade de letras possível. 
Se você não leu a primeira parte, leia aqui




 
A peregrinação

 

IV

            Será que ela será aquilo tudo ao vivo? Fotos costumam enganar o mais atento observador. Mesmo o mais experiente pode cair no truque da perspectiva alta. Do foco no rosto, do apelo ao bundão / peitão que desvia a atenção do barrigão. Faria diferença? Em um sentido prático? Não. De todo modo, não lhe convinha imaginar que ela usasse de truques tão tolos. Ao menos não novamente. Ainda preciso entender a tentativa falha de manipulação. Por que ela não foi direto ao assunto? Talvez um apego desnecessário ao papel destinado às mulheres. Porra, veja bem, eu querendo que alguém seja mais direto. Eu, o senhor verborragia.  De qualquer forma, estou pagando para ver, não há retorno. – Isso, dentre outros pensamentos, era o que passava por sua cabeça quando disse ao motorista:

- Pode me deixar aqui mesmo. – Estava a um quarteirão de distância do bar onde marcara o encontro.  A ideia era ter tempo para caminhar, elaborar melhor algumas linhas de pensamento e de ação. Isso, é claro, também gerava o efeito colateral positivo de deixar a garrafa de vinho que bebera tomar seu corpo; calmamente.

- São 22 reais.

- Só? Esta noite está começando bem!

            - Tem trocado, não?

- Desculpa, só estou com isso.

           O olhar do motorista, mesmo pelo retrovisor, transmitia tanta raiva que assustaria o mais armado dos covardes.

- Pode ficar com o troco amigo, no momento só estou com notas de 200.

Silêncio.

Uma sirene soa distante.

Silêncio.

Uma nova música começa no rádio.

Tentando amenizar a tensão, afinal não tinha de continuar ouvindo o ruído do motor do táxi, soltou:

- Depois acertamos, sem problemas.

- O que você disse?

-  Pode ficar com o troco, na próxima você me dá desconto.

- Ficar com o seu dinheiro?

- Sim, descontamos em uma outra viagem, o que acha?

- Na próxima? Tá doidão? Tá me tirando? Não preciso de esmola de playboy. “Só estou com notas de duzentos”, sério? Deixar o troco...É cada um que me aparece. Vou arranjar o seu troco.

- Calma, foi só uma sugestão...

- Você vai ficar onde? Quer saber, não importa. Espera aqui. Vou trocar essa merda de dinheiro ali na loja de conveniência e já trago de volta.

- Ok, eu acho... Obrigado? – Mas quando o respondeu o sorriso mental era tão evidente que o lábio se contorceu em direção às orelhas. Involuntariamente, é claro.

Com certeza, voltará com o meu troco. E o sorriso veio fácil, novamente, aos lábios. Preciso me conter. De todo modo, tenho de tentar entender que, como um trabalhador sub-remunerado, é compreensível que um motorista se aproveite de pequenos estratagemas para complementar sua renda. Não há um fator pessoal nessa atitude. Impelido pelas condições sociais, o sujeito age de maneira a sobreviver em um ambiente que lhe é opressor. E ele está certo, é evidente para qualquer um que pense um pouco mais. Não? Só não vejo a necessidade de toda aquela atuação.

Enquanto o táxi se afastava, ele caminhou em direção à bela igreja de inspiração barroca que se avizinhava do ponto onde ocorreria o encontro. As torres, apontando o céu, mostravam a mais bela devoção humana: o apego ao intangível, a necessidade de narrar o mundo, explicando-o. O maior dos dons: criar a própria história. Riu do fato de ter usado o termo “dom”. Um erro bobo, mas algumas higienes são necessárias com relação ao uso da linguagem. Sim, nós nos criamos, uma vez que erigimos no solo de nossa mente o que  significa “ser”. Dar sentido à vida, eis a tarefa hercúlea que esta bela catedral representa! Sentia-se livre ao comungar em pensamentos com aqueles autores que tanto admirava. Existencialismo; em sua boca a palavra era um adjetivo.



Olhando para o céu, entretanto, esquecera-se do asfalto. Quando percebeu a mulher, já estava quase passando por ela. Sentada sobre os degraus da casa de adoração;  junto com o companheiro canino, aguardava o auxílio divino: a providência. Bem, hoje serei eu o servo de Teu Deus. Tais pensamentos lhe faziam cócegas mentais...tinha de segurar a gargalhada. Tirou, então, da carteira duas notas de duzentos e, abaixando-se, entregou-as com a alegria de quem participa da melhoria do tecido social.

 

V

Tinha um rosto a prova de qualquer vaidade. Herdara do pai o táxi e o contrato de aluguel do apartamento no Edom, bairro razoavelmente bem frequentado, lar da classe média que interpreta o paraíso com fantasias de excesso e riqueza. Apaixonado pela derrota, tinha no olhar dos fracassados a companhia para as noites rodando. Roubar de um playboy? Como se houvesse algo que ele tenha e eu não possa ter. Viu naqueles olhos condescendência, pena. De mim? Não...ele teria seu troco. Eu não sou como aqueles colegas de infância que filha-da-putearam à deriva pela vida, esbanjando sorrisos por fazerem dinheiro em cima de otários de nascença e criação. Felicitando um ao outro pela melhor maneira de ganhar um trocado arriscando a existência eterna. Alguns levavam a vida como um vício, outros como um hábito, mas eu compreendi: a existência é a chance concedida por Deus para nos mantermos limpos; uma provação, um desafio de força de vontade; uma maratona, não uma corrida com pódio de chegada e beijo de namorada . O livre-arbítrio é dádiva do “não”. Essa pequena palavra, mas tão grande característica, nos diferencia dos animais e daqueles que têm como “humano” apenas a nomenclatura, não a qualidade. Negar o pecado que nos circunda diariamente e, inabalável, caminhar pelo deserto, pelas brasas do prazer e da iniquidade rumo ao trono do altíssimo, eis o desafio da religião racional.

Não devolver o troco? É isso que ele espera de mim. Olha-me como superior somente por receber mais dinheiro mensalmente. Como se esperasse que pedido de desculpa por existir, por ser mobília em sua vida. Oras, só porque tem pai, mãe...tios e tias e tantos outros pontos de uma rede social que se espalha pelos corredores do poder da cidade. Uma vida que transcorre de “sim” em “sim”. Herdou um sobrenome que o antecede nas interações sociais, e, quando isso não ocorre, utiliza a carteira cheia de notas de duzentos reais como um sorriso simpático para o mundo: posso compartilhar isso com você, quer? Um pessoa que só compreende o “sim”, como poderia se aproximar de Deus?

- Não. Não! Ele terá o troco, eu não uso o linguajar da miséria, seu filha da puta.


VI    

        E por que você não socializa no próprio bar? Não é mais fácil arranjar alguém nesse ambiente? Muitas de suas amigas já perguntaram isso. Como se tivessem alguma sabedoria para compartilhar. Acham que, depois de terem se amarrado em um pau pelo resto da vida, têm as respostas para todo e qualquer relacionamento. Como se o objetivo de todas nós fosse ter uma foda garantida, depois uma criança para amar e cuidar e cuidar e cuidar, e depois uma pica meia bomba para sentar uma vez por mês; com sorte. Sim, amiga, estou esperando pela minha alma gêmea em um bar, em uma sexta de chuva no final do mês. Toda trabalhada no uísque, não se esqueça! E ao recordar-se do álcool que lhe toma as veias, ajeita a altura do vestido e a janela de visão oferecida por seu decote. Escolher o decote ideal é uma arte desprezada. Deve-se mostrar somente o suficiente para gerar o anseio. Não é muito. Enfim, elas nunca entenderiam, afinal nunca frequentaram esse ambiente o suficiente para saberem que o homem que está aqui não é o meu tipo. Meu prazer está em homens na puberdade dos sentimentos. Virgens da malandragem. Incrivelmente cientes da sorte que é estar com alguém como eu.



            Isso não é um “eu” versus “elas”, lembra-se a tempo de finalizar uma discussão consigo própria. Álcool: beba e ganhe gratuitamente um companheiro para monólogos existenciais – eis uma ótima propaganda! Feliz com suas pérolas, senta-se no boteco onde marcara o encontro. Chegou antes, pois necessita quebrar o estereótipo que criara de mulher certinha. É a hora de transformar o cérebro álcool alterado em um pântano de desejo e uísque cowboy.

            Sim, outros tentaram a sorte. O batom se esvaía na boca dos copos enquanto outros balançavam a cabeça, sorriam, pagavam drinques...Tudo para tentar uma aproximação. Obrigado, mas o objetivo é um só. Embora esses senhores a divertissem, não perderia uma noite com eles.

            Vira-o de longe. Vinha da direção da basílica de santo António Maria Gianelli. Caminhava lentamente e olhando ao redor. Ela gostou...estaria pensando no que dizer? Em como começar a conversa? Seria ela o vórtice dos pensamentos daquele completo estranho? Foi quando um cachorro grudou na perna dele com os dentes. Com chutes, ele afastou o animal. Com chutes, garantiu a permanência do bicho em estado de repouso; final. Uma senhora de rua foi então na direção do “boy da noite”. Por quê? Grita a velha, caindo no chão e tentando resgatar o animal da morte. Os chutes prosseguem. Parecem ter, à distância, um alvo duplo. Acertam e acertam. Fortes, decididos e bem sucedidos. O que não deveria ser uma bola; vira. O que não deveria explodir em vermelho; explode. Quem não deveria chorar; chora. Aquele que não deveria ir embora; vai? Vai para onde? Como assim? Ainda estou aqui. Aqui. Aqui, porra!


VII

Compartilhar com o próximo. Que piada de mal gosto. Como se fosse possível termos algo em comum para partilhar. Como se fosse possível ceder algo que interessasse a alguém cuja grande aspiração na vida é permanecer; ser mais um de tantos da espécie que se espalha desenfreadamente. Em que eu ajudaria algo como ela? Em que isso me seria proveitoso? Não preciso dela. Não? Não! Olhe para esse rascunho de pessoa: prostrada nas escadarias da igreja, fantasiada de mendiga, acompanhada por um cachorro que consegue feder mais que a dona. Não precisa de ajuda... Não quer aceitar meu dinheiro? Agora não posso nem fazer-lhe uma boa ação? Olha-me nos olhos e diz não precisar de minha ajuda? Desculpe-me, tomara que morra, velha. Você e seu animal. O surrei até a morte, sim. No entanto, fora ele quem primeiro me atacou. E eu pedi desculpa; ainda. Gostei do que fiz? Não. Tinha escolha? Não.  

A velha não aceitar minha ajuda fora, sem dúvida, a atitude mais estúpida daquela vida. No entanto, analisando com um pouco mais de frieza, ao menos ela assumira a posição de inferior com orgulho, mantendo assim a humanidade; ou melhor, ganhando assim humanidade. Há beleza nisso! Sim, mesmo esse projeto de gente teve a honradez de recusar as facilidades da vida na rua.

Tal qual o fio de Ariadne salvara a bela jovem da depravação provinda de um ser inferior, o minotauro, a atitude dessa velha revela um caminho. Não posso aceitar uma posição subserviente em todas minhas interações sociais. Mesmo ela, pode ensinar-me algo. É meu dever ensinar pelo exemplo, somente assim a evolução social será factível. Foi então que, tentando desculpar-se por ter matado o cão, foi afastado com gritos histéricos. Como esperado, ela não compreendeu. Por quê? Por quê? Oras, só há uma resposta e todos sabem, não? Porque eu posso, porque eu quis.

Estava decidido, tomaria uma atitude. Não posso permitir o caos total. Tome-se o exemplo do taxista. Se lhe perdoasse o roubo, o que seria de todos nós? Não era questão de se apegar ao troco como se precisasse. Nunca. Mas como poderia aceitar tal vagabundagem explícita? Seria contrariar todas as regras que baseiam o contrato social. Aquele homenzinho de merda lembrando-se de mim e sorrindo...Não! Feliz por se dar bem. Alegre por enganar mais um  playboy sem noção. Sei que ele pensou isso. Eu sei. Dá para acreditar? Como se não fosse por minha causa que ele sustenta seja lá a vidinha que tem: os filhos, a mulher permanentemente grávida, o pai e mãe doentes. Dá para aceitar isso não... Esse tipo de gente acha que tenho algum tipo de obrigação com eles. Têm de entender o valor da bondade! Perceber a virtude do doar, o desprendimento solidário de deliberadamente entregar aquilo de que não preciso para que tenham uma chance. Porra! Esse puto está estragando a minha noite! Não vou conseguir conversar com a gostosa pensando nessa afronta. A noite promete estranhas epifanias. – falava para os ares enquanto a sangria de um sorriso escorria por seu rosto deformado pela raiva.

Ou respondo à altura ou em breve não terei uma sociedade de que me orgulhar. Um local seguro onde possa dormir. Vão roubar tudo? Não enquanto eu puder impedir. Aquele motorista sabia que fazia algo errado, mas, oras, se ninguém fala nada, por que não continuar fazendo, não é? Sem crime, sem pecado. Por que não continuar ganhando, troco por troco? Roubando, noite após noite. Hoje não! Eis o livre arbítrio, a capacidade de dizer: “basta!”

Eufórico ele sinalizou para que um táxi parasse.

            - Por favor, siga aquele táxi.

            - Que táxi, senhor?

            Após um momento de dúvida inesperada, ele responde.

            - Pode seguir adiante, agora!

A loucura é areia movediça em noites como essa.

 

 

VIII

            Tentava entender...Sentada no local marcado ela o viu descer do táxi. Observou quando, pensativamente belo, contemplou os céus. Lá estava o alimento de hoje, caminhando em sua direção. Prestava homenagem com o olhar à bela igreja. Ela nem era católica, porém gostou de notar algo não superficial nele. Era grande coisa? Não. Mas em uma noite chuvosa como aquela, todos têm algo a oferecer. Começava a se preparar para recebê-lo com seu sorriso treinado quando o sujeito ajoelhou-se próximo a senhora abandonada à porta da igreja. Doava algo? Que belezinha, será que metia bem? Esses idealistas costumam ter medo de lambuzar a boca em uma boa boquete. E se tivesse nojo de suar? É uma hipótese. Não teve tempo de prosseguir os devaneios a respeito dos caminhos futuros e possíveis. Foi trazida de volta ao presente quando  os chutes raivosos dele lançavam o corpo do cachorro e da mendiga cada vez mais longe. Cada vez era mais dolorido de observar. Por quê? Era esse o mesmo homem com quem conversara no início da noite? Talvez estivesse se confundindo. Com certeza estava, afinal, aquele desconhecido acabara de pedir um táxi, ou seja, aquele merda não era o par escolhido.

         - Mais um uísque, por favor – pediu, já tranquila por ter conseguido controlar o desenrolar descontrolado de sua mente alcoolizada.

            Assim que o garçom lhe entregou o copo, sentiu um olhar distante pousando sobre si. De dentro de um táxi, ele a olhava. O semáforo o prendera por instantes frente a frente com ela. Não havia dúvida, era ele; partindo. Ainda teve a audácia de acenar e mandar-lhe um beijo.

            Mandou-lhe um beijo e foi-se com a liberação verde da sinaleira. Foi-se...

            Como assim? Quando o uísque chegou as suas mãos, encarou-o como quem vislumbra no leito de morte o pai ausente. Responda-me, por quê? E a resposta veio. Por caminhos tortuosos a verdade se revelou. Uma trilha indicada por copos vazios: a do impulso. Seu batom não mais se esvairia em repetidos copos. Nesse momento, seguir aquele olhar parecia o ato racional a ser tomado.  Como ousara...Ela, abandonada?

            Porra, olha o exagero. Pensa mais um pouco. Estava ali por si própria, sim. Gostava de fantasiar ser uma vampira, alimentando-se das emoções alheias. Ou melhor, da emoção: a esperança. Por que precisa daquele merdinha? Não precisa. Contudo, tudo isso não é certo. Havia contas a serem acertadas. Pela mendiga velha, pelo cachorro morto, acima de tudo, por mim.



           








Todas as imagens são de autoria de Lourenço Mutarelli e pertencem ao álbum Mundo pet
Você pode encontrar esse álbum aqui.

Números 6 - O chamado

 Salve, traças,

 Estou começando a publicação do fanzine Números em sua edição 6. O conto ficou um pouco longo, então, antes de publicar o arquivo completo, publicarei a história em três posts por aqui. 
Ainda não tenho o título dessa história, AJUDEM-ME!. 

O chamado

I

Futuro é um artigo de luxo. Ter um “a longo prazo” é um puta privilégio de que ela não desfruta. Com fome, desejaria comer. Cansada, pensaria em despencar na cama. Com tesão e solitária, o plano é sair para meter. Hoje. Agora.

Certas noites precisam do amanhecer, enquanto outras anseiam pela madrugada. Ela só queria se sentir querida, desejada, ser o plano de alguém...Que um ser, em meio àquele deserto, a tivesse como norte. Que a esperança dessa pessoa fosse vê-la novamente. Não confunda a necessidade de desejo alheio com carência. O objetivo dela era tão somente se alimentar da esperança contida na semente do desejo.

Acariciava a tela do celular, dançando com os dedos em busca daquelas pessoas que eram belas, mas no limite da feiura. Ele ou ela tinha de ter um ar de profundidade e inteligência, no entanto não poderia ser distante o suficiente da sociedade para não se importar com a aparência. Sim, é óbvio que o visual é importante. Em um cardápio, escolhemos o alimento pela imagem que mais agrada. Para abrir o apetite, escutava jazz e tomava uísque.

Uma vez localizado o alvo e estabelecida a certeza do interesse mútuo, declarava-se solitária e querendo conhecer alguém. Veja bem, para se saciar, precisava criar o desejo verdadeiro, aquele que não acabava com um jato de porra. Somente assim, aquele brilho esperançoso surgiria no olhar no momento da despedida. Dizer “estou afim de meter” certamente atraíria companhia, mas não era isso que buscava.

Encontrou. Hoje seria um “ele”. Cabelo black power, óculos amplos, descrição engraçadinha e sagaz no perfil. Era um pouco mais novo que o ideal, mas serviria. O papo foi direto. Não gosto de conversar on-line, prefiro contato humano, por que não vamos a um bar? Ela não disse nada disso, ele o fez. Conhecia as linhas de força que comandavam a mente masculina média. À mulher, rezavam os códigos, cabia o papel de apenas insinuar, deveria deixar para o macho as proposições, as escolhas, os convites. Não se importava, era mais prazeroso fazê-lo colocar em palavras aquilo que ela previamente desejava. Marcaram o horário e o local. Era hora de banhar-se.

 


II

A água escorria pelo alto da montanha. Um homem com a loucura do deserto portava um cajado que brandia aos céus com todo o ódio que só o amor fanático pode proporcionar. Relâmpagos cortavam a pele formando irreconhecíveis rostos. Os cabelos longos ditavam os caminhos para a torrente. Seu rosto convidava ao temor. Sua boca vociferava colericamente a verdade; cega. Abaixo da montanha, várias pessoas representadas de costas observavam consternadas a postura vilanesca do velho. O sabão tampava a mulher ajoelhada que se recusava a pagar a devida atenção ao profeta. O calor gerado pela água e pela fricção do sabão trazia uma tonalidade vermelho-sangue à cena. A tinta que rasgara a pele cobria a totalidade das costas. O movimento do corpo, recriava vida na face do senil legislador sacro: o sermão renasce no calor do sangue que se prepara para a vida noturna da capital.

Algumas leis são eternas, – na escuridão do banho quente, ele pensava - há verdades além daquilo que nossa visão entrega. A revelação não pode se dar pelos sentidos calcificados pela podridão do cotidiano. A bucha raspava a pele em um movimento obsessivo; amoroso. O banheiro é  o melhor lugar da casa. Banhar-se em silêncio no ambiente sem luz, limpar o corpo e a mente, clarear o pensamento.

            Repetia esse processo todas as noites antes de começar a trabalhar. Apesar de tudo, ainda precisava de dinheiro para alimentação. Levava uma vida simples e regrada, pois desejava interagir minimamente com o mundo. Sob a luz bruxuleante das velas secava seu corpo. Observava sua figura no espelho de dois metros de altura por um de largura que mantinha em seu quarto. Gostava de admirar seus músculos, se quisesse poderia colocá-los em ação e espremer qualquer um daqueles com quem tinha de conviver. A imensa tatuagem de Moisés no monte Sinai que cobre completamente suas costas o relembra de seu caminho. Traz com orgulho, na ruína do corpo, a marca da revelação.

Veste-se sobriamente, toma um copo de vinho acompanhado por pão e segue para o trabalho. Mais uma noite arrastando perdidos pela carne do desejo que é a madrugada na capital.


III

            Segundo meu psicólogo, eu não deveria brigar com as verdades que não me agradam, pois bem, sou verborrágico e isso não é um defeito, de modo algum! A verborragia é uma das minhas características preferidas. Vejo-a como um índice de superioridade intelectual, afinal, por meio dela desenvolvi a capacidade de articular por meio da linguagem verbal significados que normalmente seriam inatingíveis para o pensamento confortável ao chão do asfalto. Eu poderia atravessar o deserto analisando meu discurso. Dito isso, confesso que há verdade no que dizia minha ex-empregada: “Cê só sabe plantar enganos na nossa cabeça”. Sim, ela dizia rindo. Sim, ainda assim, é uma pérola de sabedoria. Sim, ela falava isso após metermos novamente pela última vez. Sim, ela errou ao interpretar minha necessidade de expressão clara, e talvez excessiva, como um sinal de afeto que atravessasse nossas diferenças e nos unisse em algo mais do que um par de pessoas querendo gozar. Acredito que atualmente ela perceba o erro em se declarar para um homem / pênis cujos desejos se resumiam a uma foda garantida durante o prólogo das noites de sexta.

Do que falamos? Oras, este é o exercício de sinceridade requisitado pelo psicólogo. Embate com a verdade. Trabalho terapêutico de confrontação com o “eu”. Em outras palavras, uma piada bem elaborada por partes de mim que nem mesmo conheço. Labirintos de pistas falsas para um ser único que existe apenas nas planilhas de imposto renda de técnicos contábeis. E lá quero eu saber quem EU sou? Respira. Respira. Volte! Devo controlar o fervor por criar narrativas / justificativas.

Esta é uma tentativa de traçar algoritmos de possibilidades, mapear minhas linha de ação com  aquele sorriso envolto em desejoso batom, flagrante esperança, fragrante tesão. Como é linda! Não há problema nenhum em beleza e ingenuidade andarem juntas, ainda a valorizo, apesar dela ter tentando me manipular feito uma criança de 22 anos. O fato de minha idade ser 22 anos enfraquece o argumento? Crio piadas para o meu próprio riso contido. Ela tentou usar-me e pensou que eu não perceberia. Um gesto lindo que despertou ainda mais o desejo.

Como devo comportar-me com ela? Sigo com o papel a mim atribuído? Explicito o quanto juvenil e óbvia ela fora? Ela compreenderia? Entenderia minha demonstração de intelecto superior a média como uma tentativa de agradá-la ou como um ataque?

In vino veritas. Não deveria fazer isso, porém tudo aconteceu rápido demais e não terei muito tempo para me preparar. Talvez seja positivo. Sinto que esta será uma noite de revelações! 












Crédito das imagens
1 - Não encontrei o autor, aceito ajuda. 
2 - Luis Royo - https://www.luisroyo.com/en/
3 - Susano Correia - https://www.instagram.com/susanocorreia/?hl=en

À deriva na ressaca de um mundo acabado, do qual só resta nostalgia


I -  Cigarros


- Pode o destino ser uma punição? Sim, nós envelhecemos. Mas pense, em algum momento passou pela sua cabeça que não aconteceria? Nunca pensou na morte?

- Esse discurso todo só porque pedi um cigarro, Maria Luísa?

- As vezes você me cansa...sabe? Lembra quando sua pressão subiu e você desmaiou na rua? "Ó meu Deus! Pessoas tiveram que me ajudar, um ônibus parou e desceu até o motorista para me socorrer. Pararam o trânsito e chamaram a ambulância". E, imagina o que mais te perturba, Francisco? Te olhavam com pena...Sim, Francisco, pena. Claro, viam a porra de um velho sendo levado para o hospital após cair sozinho no meio do trânsito. O que você queria que sentissem? Francisco. Chico. Seu Chico, você é velho. Nós somos VELHOS, custa tanto aceitar a imagem no espelho?
- Você fala isso porque não estava lá. Ficar sentado no chão esperando uma ambulância, rodeado por desconhecidos. A vergonha. Sei que sou velho, e por isso mesmo não quero mais passar por isso; se der para evitar. Lembro-me muito bem dos olhares...todos os passageiros do ônibus. Depois, carro por carro, passando lentamente para matar a curiosidade. O velhote; coitado.
- Você deveria agradecer que teve, ao menos, alguns samaritanos para ajudá-lo. Pior seria ficar caído na rua sem socorro algum.
- Certo, certo. Tem razão...sou velho para caralho e o escambau. Mas me escuta, você não tem de buscar a ração do Rei? Então... Vamos ao mercadinho, compramos a ração do Rei e aproveitamos para pegar meu maço de cigarritos. O que acha? Sem brigas?
- Se você tem tanto medo de andar sozinho na rua, não deveria fumar. Ainda mais sabendo dos seus problem...
- Vamos Rei? Vamos sair de carro com mamãe e papai para buscar sua comidinha?
- Ah...foda-se, velho teimoso. 

II - Destinos

No Brasil, todos os dias são quentes? Sim, a maioria e aquela sexta fazia parte da porção em que o inferno se estabelecia sobre o asfalto da cidade. Francisco, Chico, o Seu Chico, estava a quinze minutos no carro tentando atenuar o desconforto da presença de Rei, o cachorro, com qualquer ruído do rádio. Se ao menos tivesse gasolina suficiente para deixar o ar-condicionado ligado. Se ao menos pudesse abrir todas as janelas sem a praga latir para toda alma vivente passando pela calçada. Se ao menos o calor não colasse a pele suada no banco. Se ao menos tivesse conseguido ter filhos, talvez tudo fosse diferente, sem necessidade de cigarros, cachorros e desmaios pela rua. Talvez nada mudasse; hipóteses para tempo ocioso que foram interrompidas pelo latido estridente de Rei chamando a atenção para a mulher à janela.
- O senhor é o Seu Chico?
- Sim, sou. Por quê?
- A sua mulher precisa do senhor, ela desmaiou. Já chamamos a ambulância.
           Respirando fundo, em choque, Chico saiu do carro. Em alguns passos chegou. Lá estava ela, estendida no chão, ao lado do caixa. Um pedaço de carne caído, largado; esparramado e chamando a atenção. Francisco ajoelhou-se, tomou-a pelos ombros e chamou.
- Maria Luísa. Luísa. Acorda!

- Seu Chico – disse o velho dono da mercearia – acho que ela teve um ataque cardíaco.
Francisco, Chico, o Seu Chico, encarou-o, lembrou-se de todas as brincadeirinhas desnecessárias que o velho tinha com sua mulher. Sempre empacotando as compras com um comentário sobre o tempo, uma piadinha sobre os últimos acontecimentos. Filho de uma puta.
Ao pé do ouvido, chamou pela esposa mais uma vez, porém a verdade ficava evidente. Não havia mais aquela Maria Luísa da briga rotineira.  Sem movimento, respiração e vida, sobrava o corpo. Como pôde fazer isso comigo? 
Francisco, Chico, o Seu Chico, o velho, abraçou-a em uma tentativa de passar calor do corpo ainda vivo para o que se esvaíra. Vive, Maria Luísa. Não morre! Não aqui, não na frente de todo mundo. – Pensava, já fazendo promessas que nunca cumpriria.
- A ambulância está a caminho, Seu Chico, vem, vamos levantar. – dizia a jovem atendente de caixa.
           Francisco, Chico, o Seu Chico, o velho viúvo, fechou os olhos com toda força até ver o mundo como uma televisão sem sinal. O que fazer? Na morte, a vida torna-se insuportável, absurda e completamente compreensível. Sentia o calor da juventude ao seu lado, a atendente de caixa desconhecida, vendo-o assim, jogado, abraçado com um cadáver. O que pensaria dele? A mulher era um corpo frio, ele um corpo morno, mas aquela que lhe ofertava a mão era quente.
           Eu tenho de chorar? Abrir os olhos? Agir? A cada momento que passava junto com a esposa invejava-a mais. Antes fosse ele o morto a ocupar o tempo dos outros. Respire fundo. Olhe o mundo, analise, tome decisões. Juntando coragem Francisco, Chico, o Seu Chico, o pobre velho viúvo, vagarosamente, vira-se. Vê, enfim, a atendente loira e não tão jovem quanto esperava. Encara o maldito dono da mercearia. O puto tem uma toalha na mão. Ao redor, o pequeno supermercado está parado. Há curiosidade estagnada contemplando a cena vergonhosa; desconhecidos e conhecidos. E eu, aqui, ator trágico de uma maldita comédia! Respira fundo e levanta, porra. Mas vejam só que caralho, o maldito cobrindo o rosto da minha mulher com a toalha.
- A ambulância está vindo?
- Sim, já chamamos. – Responde a loira, não tão bela.
            Francisco, Chico, o Seu Chico, o pobre velho viúvo e abandonado, vê caída a sacola com o que Maria Luísa comprara. Dentro a ração do Rei, um ossinho de brinquedo, um pacote de ovos com alguns ainda intactos e um pouco de queijo. Revirando as compras, gema e clara se misturam com velhice  e queijo. Tira os objetos, apressadamente, joga-os no chão. O tempo não passa. Olha para os olhos que o rodeiam. A angústia é contagiante; viral. A possibilidade de uma vida escorre de sua mão. O almoço, seu e de Rei, jogado no chão, assim como a cozinheira.
            E não há um maldito maço de cigarros.
Francisco, Chico, o Seu Francisco, o velho viúvo, se levanta enquanto limpa as mãos com a toalha que fora colocada sobre o rosto da mulher.
- Preciso de um cigarro.
         Correndo, a atendente abre caminho no círculo de curiosos. Traz um maço de cigarros e o isqueiro. Tenta, sem sucesso, abrir a embalagem. Francisco, Chico, o Seu Francisco, calmamente, toma daquelas não tão belas mãos a tarefa. Deixe comigo, estou acostumado. Com os cinco minutos de paz fumegante em mãos, dirigi-se para fora da mercadinho. Na porta, no pequeno degrau, senta-se para desfrutar da calma que entra pelos pulmões. Até a ambulância não chegar, tenho ainda alguns minutos para gastar.
        Os homens de branco chegaram depois de três cigarros e levaram o corpo de Maria Luísa. Francisco, Chico, disse que seguiria a ambulância, para acertar os detalhes no hospital. Todos se opuseram a ideia, queriam que ele fosse junto com a mulher. Não, não desta vez.
        A sirene ainda podia ser ouvida quando chegou ao carro. À sombra de uma árvore, ofegante, estava Rei. Devia ter pulado pela janela da porta da frente, incapaz de aguentar o calor do ambiente isolado. Francisco saía com o carro quando o cachorro correu em sua direção. Acelerou.
        No semáforo, pensou no que acontecera. Buzinas o trouxeram de volta ao mundo. Não, não havia do que se envergonhar. Olhou para o banco dos passageiros procurando e encontrou seus cigarros. Ligou o ar-condicionado e seguiu para o hospital. A velhice não é uma punição, é apenas destino. Ria.




Crédito da imagem: Flávio Carvalho - Série trágica. 

Fantoche


Não estava contente. Como poderia? O presente era o girar constante do disco do rei e a melodia trazia certeza. Elas morreram! Só; estava a salvo do vazio do mundo satisfatório para pessoas razoáveis. Dobrava as roupas recém-passadas: roupa de casa, roupa de cama, roupa de mesa, roupa íntima, roupa oca, roupa sua. Os planos para o dia eram a manutenção do estado de limpeza hospitalar da casa, e da vida, no entanto, feito um soluço mental, uma ideia saltava entre pensamentos mecânicos.

O vazio, sempre tão contido, ansiava por forma. Não, hoje não...Sabia como agir. Foi até o banheiro e lavou o rosto dando às mãos o carinho de uma camada de hidratante e à face a proteção de creme rejuvenescedor. Os olhos captaram uma imagem fugaz: adultecera rápido demais, vestia uma fantasia velha e carcomida de sapiência insustentável frente ao olhar atento. O reflexo ensaiava um sorriso cujos dentes brilhavam a felicidade de uma lâmpada nunca acesa. Em um momento de fraqueza, caminhou para o quarto pronto para se unir à cama. Morrer é mais fácil que nascer...soluçavam os pensamentos.

Amparado pelo abraço do colchão, uma voz o trouxe de volta à superfície da vida.

- Deitado já? É cedo ainda.

 Calmamente arrumou os cabelos com as mãos e se virou. Com um sorriso colado ao rosto, respondeu:

- Estou indisposto, um soluço horrível.

- Deixa disso, me ajuda. Preciso me arrumar. Hoje a noite será boa! Vou-me encontrar com o pessoal do trabalho e o doutor estará lá.

- Vejam só quem está toda cheia de planos. Controle esses hormônios garota. 

- Vai me ajudar ou vai ficar aí beijando o travesseiro.

 Toda aquela vida e ânsia por se conectar lançando-se à imprevisibilidade do momento eram atraentes. Contagiado levantou-se e foi até a penteadeira. Sentou-a e com uma escova começou a organizar os longos e loiros fios de cabelo dizendo o seu amor com os dedos. Aqueles sonhos requentados de filmes copiados de Hollywood traziam movimento para o pensamento, algo parecido com vida, mesmo que de plástico. Uma voz o chamava para fora:

-Sabe, tive uma ideia, por que você não vem comigo? Ou vai me dizer que tem algum plano para hoje a noite? O que acha de tirar um pouco as teias de aranha?

- Olha o respeito menina! - Disse com um sorriso insinuante. 

  A possibilidade era tentadora e o lisonjeava. Não pensava mais em receber esse tipo de convite. Para ele, sua presença transmitia uma espécie de vírus. Sua velhice era uma doença que permitia que interagisse somente com pessoas com a mesma patologia. Um encontro entre amigos? Jovens ao redor da mesa conversando sem objetivo algum além de estar ali, tirando prazer da presença alheia e da fertilidade do futuro? Era uma ideia encantadora, todavia, seria mesmo um convite, ou apenas um educado afago de piedade que, logicamente, seria compreendido e, portanto, educadamente negado?

- Não brinque assim, vai que eu aceito. Não quero te fazer passar vergonha.

- Como você é bobo. Está decidido, iremos!

 Sem deixar que o silêncio disseminasse dúvidas e inseguranças, respondeu:

- Iremos então, - com toda a determinação de um crepúsculo, disse - mas deixe que eu termine de te arrumar.

 Aceitar aquela afirmativa, aquela possibilidade de convívio, pareceu tão absurdo aos seus ouvidos que nem a pele algodoada que tocava o trouxe para o agora. Como proceder? Aceitara, porém não poderia simplesmente ir sem se encerrar em um labirinto de “talvez”?

- Tem certeza que não atrapalharei? Que espécie de garota chama seu pai para acompanhá-la?

- Uma que o ama e sabe que ele está precisando de um pouco de sangue circulando rápido pelo corpo. Deixa disso, está decidido. Agora mudemos de assunto. O encontro é social: umas cervejas e meia dúzia de palavras ao vento. Você aguenta umas horas sem expressar tristeza em cada som e movimento?

- Você aguenta?

 A resposta instaurou um silêncio laborioso, que buscava ser quebrado, mas era movediço, traiçoeiro. Restava permanecer no pragmático penteado, mesmo que cada vez mais aqueles fios se assemelhassem a plástico, mesmo que tudo parecesse falso.

- Desculpe-me, fui injusta. Sinto falta de mamãe tanto quanto você, apenas tento amenizar a dor de maneira diferente. Acho que no último momento ainda estaremos pensando na fatalidade daquele acidente e da falta que ela nos faz. Não há resposta certa ou modo eficiente para lidar com a ausência. Você busca o silêncio; eu, o ruído. Você o vazio; eu, a completude. De fato, talvez só falhemos de maneiras diferentes, vai saber. Vamos tentar do meu jeito esta noite, pai?

- Sim, vamos. - Respondeu com o máximo de felicidade que podia encenar. Queria abraçá-la e deixar fluir as lágrimas, entretanto seria egoísmo e esta era uma noite para compartilharem felicidade, não tristeza. Acariciou com os olhos o retrato da família. Ele, a mulher e a filha na praia grande, em Ubatuba: férias, calor, suor, risadas e música; a última viagem das duas. Por que ele teve de sobreviver? Isso era traição.

- Meu cabelo já está lindo pai, vai se arrumar enquanto me maquio. - Disse a filha, removendo-o de um redemoinho que talvez o afogasse em um caminho sem retorno.

- Está bem, nos vemos em breve então.

 Estava feliz? No mesmo sentido em que uma lebre se compraz em fazer do corpo. Existem dores que acalantam e acompanhar a filha faria bem a ela, e talvez a ele. O que tinha a perder? Internado naquela realidade, bastava renunciar à paz irrepreensível do velório contínuo que chamava vida. 

 Banhou-se, barbeou-se e se vestiu. No espelho viu o nascer de um sorriso. Perfumou-se e saiu, projeto de novo homem. Não se sentia assim desde a última vez que sairá, na noite passada. Sim, talvez fosse um pouco dramático.

- Vamos filha! - Disse, tomando-a no colo e caminhando glorioso, tal qual uma aranha presa em sua própria teia, fantoche de si própria. 











Créditos:
Imagem 1 - Asua Yordanova: https://www.artstation.com/asya_yordanova
Imagem 2 - Miles Johnston: https://www.instagram.com/p/B6tFObXJPAM/