Homens Duros, Parte II


II – A carta

Taubaté, 15 de abril de 2007.
             
     Amigo, anos se passaram até que eu cansasse de navegar o silêncio do grito que nunca foi real; o não, o basta, o ponto que definisse a revolta. Nada muda o passado, mas neste primeiro contato que faço algo muda dentro de mim, aceito uma realidade.Talvez para mim, apesar de todas as complicações, tudo esteja sendo mais fácil. Em minha nova escola ninguém me julga, os comentários maldosos não me acompanharam, ao passo que com você, deve ser duro ter de encarar todos os dias homens que te desprezam pelo que é, ou melhor, pelo que fizemos. Sei que esta segurança que sinto é passageira, mesmo em casa onde o silêncio sobre o acontecido é a lei, como se ao ignorarem o passado ele deixasse de existir, sinto a tempestade se anunciando na esquina do futuro. Sei quem sou e conheço meus gostos, tudo retornará à tona; temo por este  dia. 

      Após termos sido pegos no velho carvalho, dias rolaram com a mesma freqüência que lágrimas sem que eu tivesse autorização para deixar meu quarto. Incessantemente meu pai refez o caminho entre minha casa e a cidade, era evidente que a mudança ocorreria, e assim o foi. O velho Zé Dias é de outro tempo; cabeça dura ao extremo, não é capaz de suportar os comentários, pois a minha escolha é uma ferida em sua própria masculinidade. Não sinto raiva de meu pai, tão menos sinto algo, minha tristeza provém do fato de ele nem ao menos ter tentado me entender. Ele nunca disse nada sobre o assunto, nenhuma pergunta ou reprimenda. Seu silêncio cavou fundo em mim, e hoje ainda vejo a sombra do sorriso em seu rosto; um riso simples que não mais tocou meus olhos. 

      Amigo, sei que não fizemos nada de errado, talvez um dia todos compreendam, mas este dia não é hoje e tão menos se precipita no horizonte do amanhã. Entendo as conseqüências que aqueles beijos de anos atrás geraram; atos pelos quais ainda carregamos as cicatrizes, no entanto não há momento em que o arrependimento passe por minha cabeça. 

      Tenho saudade de nossa rotina tranqüila na calmaria da roça.
                                                                                                   De seu amigo, 
                                                                                                   Alessandro Dias.





Ps: O quadro apresentado é de autoria de Salvador Dali, não conheço o nome da obra(se alguém souber me avise), e para mim representa muito bem as imagens díspares que podemos criar um do outro ao nos utilizarmos da comunicação escrita em geral; cartas, e-mails, seja o que for...
                                                                               

Homens Duros, Parte I

Salve traças!
Posto hoje a primeira das três partes de um conto baseado em fatos reais ocorridos no bairro Pinheirinho, região rural de Taubaté, interior de São Paulo.
Disponibilizarei as partes seguintes com uma frequência semanal.




                                             Amanhecer


Taubaté, 10 de junho de 2011.


 Belo fim de mundo, nem GPS funciona aqui. – Tais foram as palavras do tenente Hermes da policia científica, antes de cuspir seu chiclete de menta na precária estrada de terra. Do bolso de seu casaco retira uma carteira enquanto caminha em direção ao corpo estendido próximo a porteira.
- Quem foi o esperto que colocou este cobertor na vítima? Alguém que, provavelmente, ainda sente náusea ao ver um pouco de matéria encefálica escorrendo pelo crânio eu presumo. Ou então uma boa alma que se preocupa com o frio que o cadáver está sentindo?
- Tenente a vítima foi encontrada assim. – Disse o sargento Ulisses com sua característica rouquidão ao bom estilo demoníaco.
- Com o cobertor? É comovente a bondade humana, tenho de me concentrar para não chorar. Estourar a cabeça do individuo foi fácil, o difícil é abandoná-lo no frio da estrada sem cobertor?
            Não há necessidade de disfarçar a noite regada a vodka barata: olheiras, bafo, humor ácido; desistindo das aparências o sargento Hermes retira seus óculos escuros e em dúvida olha para sua carteira. Na cena do crime estão presentes três viaturas, oito policiais e um cheiro onipresente de esterco, no entanto é de desprezo que os olhos do sargento Ulisses lacrimejam ao ver um superior hierárquico perder tanto tempo para escolher o sabor do chiclete.
            - Ô Ulisses, o que você me sugere? Acredito que o de sabor canela não vai cair bem antes de comer alguma coisa. Menta eu acabei de cuspir, o que o exclui também. Melancia, fora de cogitação neste clima fúnebre, estou em dúvida entre Cereja e Frutas Vermelhas, o que acha?
            - Não é tudo a mesma coisa? – A voz de Ulisses é tão dura quanto seu rosto velho.
            - Lógico que não homem! Por essas e outras que você será sargento por mais este restinho da sua vida, enquanto eu, me tornarei um delegado. Que seja, vai Cereja. Agora me diz, este rastro de sangue partindo do corpo leva até onde?
            - Até o quarto do suspeito.
            - Surpreendente! Vamos caminhando.
            - Há indícios de que ontem ocorreu algum tipo de comemoração à base de pinga e churrasco.
            - Ulisses, passei a noite mergulhado em vodka e prostitutas, mas ainda sei o que quer dizer estas garrafas de pinga jogadas, estes cacos de vidro, aqueles copos sujos, a brasa ainda quente. Nunca te contei que me formei com louvores? Oras, desculpe-me, deveria estar agradecendo pelo seu esforço em parecer útil, no entanto, convenhamos, se você fosse capaz de resolver tudo aqui sozinho não chamariam um homem semi embriagado para vir aqui.
            -  Se terminou suas piadas senhor, podemos continuar com o  trabalho.
            - Ria homem! Era uma piada, este ambiente está muito deprê, estava só tentando descontrair um pouco. Não estou mais feliz do que você por estar aqui.
            - Senhor, o acusado alega que não aconteceu festa alguma ontem neste local, e que desconhece o fato de haver um corpo na porteira de seu sítio. Ao abordarmos o suspeito suas pernas estavam com sangue coagulado, porém ele disfarçadamente tentou limpar.
            - Relaxa, a perícia dá um jeito no sangue. Podemos entrar sargento Ulisses?
            A casa não passava de um enorme quarto que englobava todos os cômodos necessários, da cozinha à sala. As paredes eram de tijolo sem reboque e o chão de terra batida. Um chapéu, uma foice, uma enxada e um casaco realizavam a decoração do local, logo ao lado do pequeno fogão portátil, duas bocas.  Da porta Ulisses e Hermes perceberam que o quarto / casa cheirava terrivelmente a álcool. Espalhados pelo quarto mais dois policiais, enquanto um fingia utilidade abrindo a janela, o outro tomava calmamente um café quente com o acusado. Ao presenciar tal cena, sargento Ulisses visivelmente se irritou e não fosse a intervenção de Hermes, teria repreendido desnecessariamente o policial que tomava seu café.
            - Acalme-se Ulisses, venha comigo até aquele guarda-roupa para podermos ouvir a conversa.  – Disse Hermes em um tom conciliador.
            - Sabe seu Camilo, eu morei aqui no bairro quando criança. Meu pai sempre disse que o solo aqui é encrenqueiro, mas reconhece o trabalho de um homem dedicado. – A voz do jovem soldado era lúcida, cada gole do café parecia lhe inspirar uma palavra sincera.
            - Pois é, este ano espero uma boa colheita. – Respondeu o velho Camilo, cabisbaixo.
            - Eu morava ali na baixa do águaverde, no sopé do morro do saci. O senhor deve ter conhecido minha família.
            - A lida com a terra lá é difícil.
            - Tem a parte boa e a ruim. Aquela terra cria homens duros.O senhor não vai mais comer bolo? Se me permite vou pegar o último pedaço, está muito bom.
            - Pode pegar, estou de ressaca.
Este era o momento, o acusado começava a ceder e o jovem soldado Alessandro Dias notou muito bem.
- Comemorando ontem?
A pequena geladeira ligou seu motor, o sargento engoliu seu chiclete, e o soldado tomou mais um gole de café, queimando a língua, para enfim seu Camilo responder:
- Um velho amigo voltou para o bairro. Companheiro de longa data, quando crianças caçávamos sabiá para vender na cidade.
- Ele havia se mudado?
- Passou oito anos na cidade, cabeça dura, tinha vergonha de uma coisa que o filho aprontou.
- Então a festa era para ele?
- Filho, sabe o que eu reconheci nos seus olhos? Tristeza, você sabe o que é um cabra ruim para diabo. Sofreu muito nessa vida não é? Aquele corpo lá na frente fui eu que matei, meu amigo, o seu Zé. Tem palavras que homem nenhum consegue ouvir e ficar quieto. Matei mesmo, mas te digo não foi por maldade não. Meu coração não carrega metade da maldade que esses seus amigos de farda aí carregam.
Alguns minutos depois o soldado Alessandro Dias foi chamado à presença do tenente Hermes: dois metros de magreza, cabelos loiros curtos, sentado sobre a porteira, este era o homem responsável pela operação.
- Soldado Dias?
- Sim senhor.
- Gostaria de lhe dar os parabéns pela atuação junto ao acusado, não que necessitássemos de uma confissão neste caso, mas de qualquer forma você me poupou algum trabalho. O senhor interpreta muito bem, ou melhor, mente muito bem.
- Nem todas as mentiras são falsas, apenas mal interpretadas.
- Inteligente, e perigoso, este seu pensamento. Aceita um chiclete? Tem de Cereja e Frutas Vermelhas.
- Prefiro Frutas Vermelhas, o sabor levemente mais ácido combina com o ambiente.