Números 5

Salve traça!

Tem nova publicação do zine Números, edição 5 agora! Quem diria...
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Para aquecer, aprecie o início:

“os homens é só disso que precisam, tempo, e é só isso o que têm, o resto não passa de ilusão”.
José Saramago

Se contarmos por tempo suficiente, todas as histórias terminam em morte. Mas, temos tempo? E interesse?
Naquele domingo, todos se sentavam à mesa para o almoço passavam de prólogos para indiretas, porém naquele dia havia um clima de ânsia no ar, necessidade peremptória de expressar tudo até a última letra.
- Isso é só um trabalho, nada mais. Tem gente que daria tudo para estar no seu lugar, gente que ganha a vida catando lixo na rua...e você? Só reclama. Sério? Nossa homem...você cansa. Não fosse as criança arranjava outro, um homem de verdade.
...

A mulher das dunas


    Amanheça, ela pensa. Na penumbra a carícia delineia a vida daquele que está ali, seu marido. Os olhos, a orelha, a boca. A geografia desbravada pelo tempo deveria ser conhecida? Com os dedos tenta marcar fronteira, estabelecer demarcações permanentes, transformar o que é estranho em familiar. Afinal, são quase dez anos de casamento. A noite insiste em abandoná-la aos gracejos do desconhecido, da imaginação. Adentra os cabelos, agora escassos, mas ainda grossos. Na escuridão ainda são escuros, como se o ambiente parasse o tempo. Viaja com os dedos pelas orelhas, protetoras do abrigo do som. Quanto de suas palavras ali morrem? Quanto de si perde a luz naquela caverna? Detém-se à beira de um sussurro. A hora é de silêncio. Cala! Não. Agora é a única hora. No ouvido, uma declaração: amo. Segue viagem e alcança os lábios. O toque é o reencontro de velhos amigos: propício à nostalgia e fabulações de futuros. O odor traz à memória as noites onde o vinho era apenas fogo. Os olhos...fechados. Não a refletem mas também não julgam. Uma tosse, um movimento, ele se vira. Uma vez mais, as costas.  Mesmo no silêncio da contemplação, a negação perdura. 
    A manhã não chega, mas ela amanheceu. Levanta-se com dificuldade. Ainda lhe dói o ventre, as pernas, a face, a devoção, a noite. No banheiro aceita a acolhida quente da água, mas recusa-se ao julgamento do espelho, teme que seu rosto esteja marcado pelo amor excessivo que ocorrera. Perfuma-se, veste-se, penteia-se com o auxílio do tato. Está pronta? Caminha em nuvens pelo quarto, não quer roubar-lhe o sono com passos brutos. Fecha a porta com o afeto de um abraço em um velório.
     Preparar o café é a rotina que a afasta da noite. Pela janela, ela vê o dia nascer no jardim vizinho; belo. Talvez a televisão ajudasse, todavia não seria justo criar ruídos desnecessários. Pega seu celular e mergulha na cachoeira social. Desce pela tela a corrente de vida. O dedo move-se sozinho. A mente se infla, se cala. Sua existência é o agora por onde rola pacífica, ao sabor da correnteza; alheia.  
    Retorna à vida assustada com a batida da porta do quarto. 
    - Você fez o café?
    Sim, está quentinho.
    Os movimentos dele são rápidos. Deve estar atrasado. Atualmente, mesmo aos domingos, tem ido trabalhar. Os sons geram as imagens, pois ela não se levanta. A garrafa abrindo, a fumaça subindo enquanto o café cai no copo. Ele bebe, gole a gole, olhando pela janela o jardim vizinho. Planejando o dia. Tudo o que terá de fazer, problemas a resolver. Dedicado. Sente vontade de abraçá-lo, pedir que fique, agradecê-lo por tudo com o calor de seu corpo. Não. Não agora. Há muito na mente dele, sempre há. Quisera poder ajudar-lhe com algo além da disponibilidade. Poderia ceder tanto mais...Assustada, é retirada de seus pensamentos por um olhar atento.
    - Cuidado ao sair de casa. Caso perguntem, lembre-se de dizer que caiu e bateu em alguma coisa.
    Com o meneio do rosto ela concorda. Não é preciso mentir. A queda é longa e constante. A marca externa nada mais é que uma erupção; incontrolável.  
    Não sairei hoje.
  Pensa em perguntar sobre o horário do retorno, gostaria de planejar algo. Arrumar-se e perfumar-se para além da madrugada...Mas seria injusto, não?  Hesita e se contém. Além de ter de trabalhar tanto para sustentá-los ele ainda tem de se preocupar com o horário do retorno? Ele precisa se preocupar ainda mais com ela?
    Em suas divagações percebe que só lhe restou o vento. Ele passou apressado, bateu a porta. Ela levanta-se, ainda há tempo de uma despedida pela janela. Seu caminhar é rápido. Abre levemente a cortina, se ele olhar a verá.
    A vizinha o aguarda no jardim, o trabalho dela é no caminho do dele. Abraçam-se com um sorriso de bom dia. Lembra-se da voz de sua falecida mãe: ele é muito educado, né? Sim mamãe, é. Entram no carro e partem. Ele não olha para trás. O sol os acompanha, tão cedo.
   Sobra-lhe o vazio a pressioná-la contra a janela. Sente vontade de algo. Tem ânsia. Queria dizer, fazer... Falta-lhe uma palavra para demarcar o que está ausente e ao mesmo tempo a rodeia, comprimindo-a, ditando os limites de sua existência. Sente que há uma teste e ela foi reprovada, pois sua vida é toda pautada em terras a ela hostis; selvagens e arcaicas. Pode ser isso existir? Não sabe. Ela sabe. Não consegue dar forma ao vácuo que lhe tira o ar. Chega!, pensa.
    Ao menos respiro, portanto...vivo? Vivo.
   Há muito o que fazer. Abre a janela e o vento a toca. Sente o mar, o infinito, as possibilidades...de felicidades. Ali, no horizonte. É isso! Com os pulmões cheios dirige-se ao quarto. Tem esperança que não haja sangue no lençol e no piso.  
   

  Arte de: https://www.milesjohnstonart.com/

Segundo Epílogo

Epílogo para o nada

    Em janeiro do ano de 2019, foram acrescentadas 11 espécies à lista de animais extintos. Dentre elas a arara-azul, cuja penugem tem tom semelhante ao azul da bandeira do Brasil. Em janeiro de 2019, Evandro conheceu três garotas. Com uma passou uma noite conversando, com outra foi ao cinema em um tarde de mormaço e da terceira ele só lembra da covinha que surgia em sua bochecha esquerda quando ela sorria das piadas bobas que fazia.
    Em janeiro de 2019, Luísa começou sua nova dieta, ao término do mês engordara dois quilos. Em janeiro de 2019, recordes de temperatura foram, assim como no ano anterior, e no antes desse, e desde que começou a se anotar a quantos graus somos cozinhados, quebrados no mundo todo. Em janeiro de 2019, Adriana decidiu terminar seu relacionamento de 16 anos. Júlio não concordou e a torturou. Ele chamou sua ação de amor.   
   Em janeiro de 2019, Thiago não conseguia parar de ver programas de acidentes aéreos e começava a perceber um padrão composto de três máximas neles. Primeira, nenhuma vida perdida é em vão na aviação. Segunda, é sempre uma cadeia de eventos que leva ao desastre, não um fato isolado. E terceira, a aviação é um meio de transporte muito seguro, mas sua chance de se safar com vida, caso haja um acidente, é mínima. Ele não conseguia parar de pensar no divórcio de seus pais no silêncio daquela casa vazia.  
   Em janeiro de 2019, Beatriz saiu do emprego decidida a trabalhar em seus sonhos, até o final do ano ela estaria se prostituindo. Em janeiro de 2019, bandido bom era bandido morto a menos que usasse a bandeira do Brasil como lenço para esconder sorriso. Em janeiro de 2019, João e Elisa tiveram a primeira e única filha. Elisa sugeriu como nome para o rebento Sofia, ele aceitou. Sofia era o nome que ela e seu namorado anterior planejaram. Em janeiro de 2019, Gabriel se declarou para Rafaela, virtualmente é claro, ela o bloqueou depois de um mês, pois era incapaz de dizer que ainda o amava, mesmo depois de tê-lo traído. Em janeiro de 2019, fez 9 anos que Saramago faleceu e 5 que Gabo se foi. Em janeiro de 2019, em uma manhã equatorial fria, Jurandir se relembrou dos anos de 2004, 2007 e 2014. As mortes de sua mãe, seu irmão e seu pai. Vizinho da morte, ele aceitou a sinceridade da vida. Em janeiro de 2019, Júlio Roberto leu seis livros durante a suas férias, já que era incapaz de acessar as redes sociais por questões de saúde mental. Em janeiro de 2019, Maycon continuava a usar a data de aniversário de sua primeira namorada, de 15 anos atrás, como sua senha do cartão de crédito. A isso ele chamava tortura.    

   Em janeiro de 2019, o Sol permanecia nascendo e se pondo com todas as graças da previsibilidade e do tédio. Em janeiro de 2019, Ana Luísa olhou pela última vez nos olhos de Ricardo. Estavam abraçados quando o tiro lançou cérebro na camisa verde e amarela que usava. Em janeiro de 2019, Júlia se apaixonou duas vezes na mesma semana, somente para se apaixonar novamente na noite de sábado e amanhecer com um sorriso fora de lugar no domingo. Em janeiro de 2019, a folha lutava em manter-se em branco e Matheus teimava em preenchê-la com palavras. Ele sentia a idade chegando e a responsabilidade cobrando, por isso criou uma pasta em sua área de trabalho para colocar seus escritos. O título da pasta era 2018. Ele nunca percebeu o erro.     
   Janeiro de 2019 era mais um final, mais um início e mais um ponto ínfimo em uma linha do tempo. Janeiro de 2019 era também onde a vida de muitas pessoas transformava-se radicalmente, enquanto a de outras permanecia estagnada. Em janeiro de 2019, para alguns o otimismo era amargo, para outros, ignorante. Em janeiro de 2019, todos se voltavam para o passado. Alguns desejavam regressar 10 anos, outros 55. Em janeiro de 2019, o tempo era punição. 
   Em janeiro de 2019, este livro terminou de ser escrito. Eu estava otimista, contudo peguei-me falando sozinho, em uma manhã de sono mal dormido, que este seria o meu último ano de vida. Este era apenas o segundo epílogo que escrevera naquele mês e ambos apresentavam a mesma falha: apontavam para o fim e não terminavam nada.   





Arte de: https://www.milesjohnstonart.com/

Epílogo em três silêncios


I - Silêncio ensurdecedor

Tanto amor
Tanto do amor
Em silêncio
Emoldurado
Sem ânsia
A conta-gotas
À distância

A dúvida:
A distância
concentra ou dilui
o amor?  

Tagarelice...
A distância,
distancia.



Versos no papel, um quarto vazio, ecos ainda suando sobre a cama, o lençol ainda marcado.
Cicatrizes na carne , nos panos manchados, na memória.
Angústia, porta fechada, silêncio.

Ele liga.
Eles vão se encontrar...


II - Silêncio bruto

A escuridão amanhece cheirando a sonhos mofados. O olhar dopado ainda tinge a realidade de vestígios oníricos. Toda a arquitetura do reino de Morfeus insinua-se nos mínimos detalhes daquela manhã. A fechadura da porta o ameaça com sorriso de desdém, ele a abre. A cortina da sala move-se ensandecida ao som de um fado português, ele tenta ignorar. O vento frio matinal guia seus passos até o banheiro. No espelho a confirmação: terra devastada; domingo de ressaca. A água não lava, nem alivia. O reflexo agride.
Caminha de volta ao quarto. A janela limita a figura que vê nos céus: algo entre um pavão e uma serpente move-se em desafio à realidade, saudando-o em meio às nuvens com um sorriso sibilante e abissal. Se esforça para crer que está tudo bem, que a quimera não lhe devassa os olhos, que o dia não se prepara para se introduzir nele à força, que não há mal agouro, apenas imaginação.
Deita-se ao lado dela. Aquele par de olhos, outrora conhecidos, agora o desafiam a compreensão. Ela vê, mas não enxerga. Sua visão o esvazia. Ela busca atalhos, mas encontra labirinto. Retalhos de memórias e do que foram, do que desejavam ser, são carregados pelo frio vento contínuo do dia que os toma de assalto.
O que ele esperava? Mesmo o filme que assistiram, romântico, antecipava o fim. A levou para uma noite de felicidades, porém só bailaram com os fantasmas de si próprios. Deitaram para  se redescobrirem e acordaram em um covil, reféns; auto-exilados.  
Um suspiro, um bocejo; o silêncio é precário. Paira a ameaça beligerante do adeus. A solidão falha ao tentar maquiar de esperança e vida o mais ignóbil e envelhecido dos espantalhos. O cheiro excessivo do álcool trai qualquer narrativa menos visceral. O futuro agora é do pretérito; possibilidade não realizada. A noite inacabada rompe na manhã ressequida para que penumbra do não-dito seja varrida pela iluminação crua do encontro daqueles olhares. O espaço entre eles é preenchido pela ausência.  
Acabou...


III - Silêncio austero

A festa da ilusão nunca acaba? A tarde já e noite e ele está só novamente. Observa a foto que foi planejada para ser um presente, para permanecer exposta na entrada da casa em que um dia viveriam. Nela, a imagem de um passado feliz em que se abraçavam e compartilhavam um domingo de felicidades, sorrisos, planos e trilhas por desbravar. As cores envelheceram mal, não aparentam vitalidade; fantasiam-se em preto e branco. O sabor amargo perdura enquanto ele lança o porta-retrato em uma gaveta qualquer. Em sua mente reticências terminam esta história, entretanto sabe que o tempo apagará dois dos três pontos.        



Crédito:
Imagem 1  - Alterada - Capa de Amor nos tempos do Cólera, 6ª edição da editora Record
Imagem 3 - Alterada - https://noticias.up.pt/metade-dos-homicidios-conjugais-sao-precedidos-de-violencia-domestica/