Menina mentida_Parte III


Salve traça! 
Enfim, o fim. 
Decepcionem-se!



Menina mentida. 

III


“e não existe magia sem lágrimas. – concluiu a cigana.”

Presa no mármore da velhice, ansiava pelo toque de uma lágrima. A vida tardava em terminar, palavras ecoavam torturas longínquas: “Um dia você ainda vai ser alguém, deus te deu inteligência, um dom.” Sim, dom mamãe! Você acha que deus esquece alguém? Eu tenho dom para puta. Essa barriga aqui é a prova disso, não é pai? Ainda está para nascer alguém com vocação para lixeiro, um belo dom não? Catar os restos, é isso. O senhor não precisa me colocar para fora de casa, eu me coloco. E porta batia, grito calava.  E porta batia, balançando memórias sem fechar lembranças. E porta batia, misturando dores e horrores no longo vestido de Madalena; sua filha.

A velha contemplava a felicidade da filha, o vestido verde escuro cobria as marcas de nascença adquiridas com a vida. Maria das Graças, a neta, com certeza era adotada, afinal o útero de Madalena havia sido comprometido ainda na infância, pobre garotinha; uma tristeza.

Sozinha, era o momento! Com as parcas forças que tinha na mão a velha começou a movimentar sua cadeira de rodas para trás. Ainda era cedo, e a praia se encontrava praticamente vazia. Pouco a pouco a velha se aproximava da avenida. O suor escorria do rosto queimado pela idade. Em suas mãos faltavam algumas unhas, sangue escorria de feridas recentes, ainda cicatrizando. Falta pouco, ela pensa.

- Não! – Grita Madalena, distante, ao ver o perigo que a mãe corre.

As energias da velha são consumidas rapidamente, há dor, excruciante, mas ela ignora, não vai parar. É agora, o fim sonhado, enfim. A chance de bater a cabeça no asfalto é luz; é salvação. E que venha o sangue, pensa a velha ao jogar todo o peso do corpo para trás. Deseja lançar sangue no asfalto. E vai: um ruído, o horizonte se move veloz, a praia, nuvens, o sol...ela fecha os olhos.

E o movimento estaca, ela arregala os olhos a tempo de admirar o caminho reverso, a praia, o mar, Madalena correndo em sua direção, desajeitada. O vento no vestido marca o corpo deformado da filha amada.

- Muito obrigado – Diz Madalena, ofegante, arqueada sobre os joelhos.

- Essa foi por pouco dona, nossa, pouco mesmo, ela ia cair com tudo no chão. – Responde o jovem do alto de sua beleza esculpida. Suas pernas realizam uma marcha estranha, corre sem sair do lugar, não quer parar o exercício.

- Não sei o que aconteceu, a trava de segurança da cadeira deve ter falhado.

- Só pode.  – diz o rapaz com um sorriso indolente. – Bem preciso continuar, a senhora precisa de mais alguma coisa?  - e o alongamento se inicia: força os dois braços para trás. Seus músculos peitorais bem definidos saltam aos olhos de Madalena.

- Não...Não...Muito obrigado, se houver algo que eu possa fazer para agradecê-lo.

- Foi nada não dona. – Diz o rapaz, correndo antes de ouvir a resposta. Ele não olha para trás.
Após um longo suspiro Madalena empurra a mãe para longe da avenida. Maria das Graças chega, correndo.

- Mamãe, o que aconteceu com a vovó?

- Nada não gracinha. Vamos para casa, hoje vovó terá que fazer um tratamento especial durante a noite. – Diz Madalena, quase sussurrando ao ouvido da velha.

Vê-se o sorriso.

Com os olhos fechados a velha revê o sorriso nunca esquecido, imagem adolescente. Na época o crepúsculo não a impedira de ver a escuridão, mas agora percebia, não vira a luz; apenas mudara de cela. A esperança é precária, vem em ondas, promete soluções, sentidos, certezas. O que pode o resto, o lixo? Toda a vida no lixão não se explica, falta meio à promessa do início, que não se cumpre em fim; uma mentira. A velha respira fundo, banha seus pulmões em decepção.Por que aquele sorriso se repete? Talvez tudo se repita, imensamente, feito ondas que não são mar.


Um pescoço cede, lança dois olhos fechados em direção ao chão. A velha cansada. 


Vê-se dor.

Mais um dia começou. 













Crédito: Imagem pertencente ao livro, A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 

Um comentário:

Dennilson disse...

O maior lixo são as personagens.