Conto, um estudo em pedaços

Salve traça,

Aqui estamos, duas semanas seguidas em um mesmo mês. Há mais bits e palavras para serem devoradas, rapidamente e sem pensar; gula de informação. Esse estudo que apresento é um desafio, também sou guloso e anseio por um conto escrito para devorar.

Você é capaz de fazê-lo ou vai ficar somente devorando letras na passividade de sua gula?





Um estudo em pedaços


“A primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é, pois, uma imagem que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado”. Italo Calvino

1 – Num braço uma tatuagem. Uma imagem. Uma mulher. 

2 – Menard fez uma tatuagem no bíceps, o rosto de uma mulher.

3 – Luís fica vislumbrado pela tatuagem de Menard. Durante uma festa ele repara que a tatuagem começa a se movimentar. Luís sonha com a tatuagem. Obsessão. Certo dia, Luís fala com a tatuagem.

6 – Em uma aula de história da arte, Luís encontra uma representação datada do século XIV que se assemelha muito à tatuagem de Menard; autor desconhecido.

7 – Fürsten Von Liechstein,  em nota de rodapé à A arte e a igreja na baixa idade média refere-se a uma iconologia fantástica que era transferida em carne entre os seguidores de São Leopoldo que percorreram as rotas da seda. La Madonna sangrienta, era como os freis chamavam uma das imagens mais emblemáticas. Luís reconhece a imagem como a tatuagem no braço de Menard.

8 – Em uma digitalização de um códice romano do século V d.C Luís encontra a representação imagética de sua obsessão.

10 – Luís tem contato com um escrito apócrifo de Champollion no qual o francês faz menção à deusa Thessa, mãe de Thot. As palavras do francês “prisonnier de l'imagerie écrite dans la viande”  ecoam em sua mente.

11 – Ao pesquisar sobre as origens da tatuagem, Luís encontra referências a um culto à Gonatse, divindade relacionada à imagem e à escrita, realizado pelos bosquímanos na África. No livro Las crencias bosquímanas, do etimólogo Manuel Escobaldo, Gonatse é descrita como a imagem em sangue feita por um mortal dos deuses Tsui’goab e Gunab enquanto lutavam pelo domínio do mundo dos sonhos humanos.

12 – Em um trecho do diário de James Cook, Luís lê sobre a crença dos polinésios a respeito dos espíritos da imagem, seres que surgiam das tatuagens e possuíam os homens. Segundos as crenças polinésias, os tatuadores tinham que realizar um sacrifício à Kunolea, a deusa da memória, para que acalentasse esses espíritos, evitando assim a possessão dos homens que estavam sendo tatuados.

13– Luís sai à procura do tatuador de Menard. A loja aparenta estar fechada há meses e não há sinais do paradeiro do tatuador.

15 – Luís aproxima-se cada vez mais de Menard. Sua psicóloga diz que a tatuagem simboliza uma manifestação de seu inconsciente. Libido reprimida. Trauma de infância. Fale-me do seu relacionamento com sua mãe.

16 – Menard se apaixona por Luís. Os dois passam várias noites juntos. Luís sempre pede que Menard durma sem camisa. Luís está apaixonado pela tatuagem, após Menard adormecer, ele e a imagem passam horas conversando. Menard finge não ouvir Luís falando sozinho.

17 – Ao se declarar para Luís, Menard é rejeitado. Luís afasta-se do amigo.

18 – Menard abre-se com outro amigo, Pedro, a respeito de seu relacionamento com Luís. O caso entre Luís e Menard se torna assunto nas rodinhas de intervalo no departamento de artes.

20 – Os rapazes brigam. Luís culpa Menard pelos rumores que se espalharam.

21 – Luís começa a beber e a se drogar. Sua droga preferida é o LSD.

22 – Luís não consegue distanciar-se da tatuagem. Em sonhos ouve um clamor. Luís pensa em assassinato, em cortar a pele de Menard e resgatar sua musa.

23 – Luís para de freqüentar a universidade.

24 – Certa noite, ao ir embora para sua casa, Menard nota que Luís o segue. Várias vezes durante o dia o telefone de Menard toca e somente o silêncio responde ao alô de Luís.

25 – O bíceps de Luís, no mesmo lugar da tatuagem de Menard, começa avermelhar e a doer. A dor aumenta quando Luís se aproxima de Menard.

29 – Luís convida Menard para passarem o final de semana juntos no sítio de sua família. Menard, relutante, aceita.



30 – 



[Agora posso escrever?]

Ela

Salve traça,

Após um ano de proliferação silenciosa volto a trazer páginas amareladas recheadas com pensamentos empoeirados. Alimento envelhecido para a gula de traças desocupadas. 
Minha mão ainda tropeça ao tentar trazer estas letras ao papel, foi-se um ano de silêncio e para mim não está sendo fácil quebrá-lo.Meu objetivo é semana que vem escrever mais algumas linhas de baboseira e, no final, felicitar-me por postar por duas semanas seguidas. Veremos, mas por enquanto...

Bom apetite!






Ela 


Deitada, costas no mato e olhos na escuridão da noite, ela contemplava pequenas luzes pelo céu.  Lua, Via Láctea, Cruzeiro do Sul, nomes que para ela soavam como divindades modernas, inalcançáveis, passíveis somente ao toque da imaginação e da fé. Luzes a vagar pelo infinito, imagens de um tempo que se fora. Se esta frase não está em uma obra de ficção deve ser parte de algo religioso, transcendental. Luzes, seja no tempo ou no espaço, distantes. Memória constante da insignificância humana. Sobre tais corpos celestes, gastam-se números, criam-se palavras. Na matemática ou na ficção, aproxima-se o infinito na tentativa de torná-lo mais real, parte de nós, para, quem sabe assim, nos sentirmos parte do todo; acolhidos, não apenas grãos de areia estelar sonhando existir e crendo conhecer. Aqui, deitada sob o mesmo céu que milhões, ela pensava sobre tudo o que não havia necessidade de pensar. Penso e penso, invento, crio, desespero: e para que? Tudo se resume a solidão e abandono, acaso e caos? Ela pensava em demasia e nunca gostou disso.

Suas costas sentiam um leve toque de frieza provindo chão molhado pelo orvalho noturno. Seus olhos carregavam a mesma umidade que o gramado que a acolhia. Seus tímpanos, atentos, excitavam-se com o bater das asas de um besouro em seu vôo impossível; rotineiro. Tudo estava tão distante que não fazia diferença. Uma estrela, o Sol. Um satélite, a Lua. Um planeta, a Terra. Um hemisfério, um continente, um país, estado, bairro, rua, casa, número de registro geral, tipo sanguíneo, crença, amores, mágoas, tipo sanguíneo, localização no GPS, angústias. Que diferença faz isso tudo? Isso tudo sou eu? Quem sou eu? O que é uma consciência a se questionar em um mar de bilhões de outras que se sucederam no tempo? O que pode haver de belo e único em mim? E assim ela se perdia em pensamentos e acabava por se culpar, pois se achava, uma vez mais, perdendo tempo ao pensar. E ela não gostava disso. Deixa disso, não há nada...

E vinha o nada. Com a mão ela cobria a Lua, ocultava a pouca iluminação da noite de verão. Olhava-se na escuridão. Sentia e temia. E assim, ao tocar carinhoso do vento, pensava em sua pele. A pele, o que é isso? O maior órgão do corpo humano, parte da experiência de ser. Por ela eu sinto o caminhar da formiga em minha perna, o calor do outro, o beijo do metal frio das mesas de hospital. E quem faz isso tudo? Ela, eu?

Eu? Entre meus dedos uma pequena marca branca, um trecho de pele destoante, uma memória.  Uma comunidade de criaturas procria e vive aqui, nesse minúsculo vale entre meus dedos. Nessa idosa marca, cicatriz da longínqua infância. E esse mesmo luar ilumina seres que somente via imaginação consigo tocar. Tudo está tão distante e ao mesmo tempo tão próximo, do pó de estrelas que dizem que sou aos seres microscópios que me habitam. Tudo, igualmente inalcançável. Coisas e seres completamente aquém da minha percepção, mas ainda assim, o conhecimento que o mundo provém me diz: acredite.


Olho para céu, olho para mim. Fecho meus olhos, abro meus olhos. E não importa o que faça tudo o que posso fazer é acreditar? Estou presa a fragilidades que fogem ao toque de minha compreensão, por isso creio. Sento-me em descobertas e criações alheias. Sim, que eles pensem, quero viver; existir. E o pensamento se desenrolava em sua cabeça com a mesma fragilidade das crenças que ela dizia sustentar. Existir, viver, eu? Mas o que há em mim que seja meu, que seja eu? Ela nunca gostou de pensar, mas um silêncio profundo lhe dizia que isso era tudo de existência que poderia ter.

Eu seria isso? É pensar que me torna o que sou? Que me dá um “eu” para grudar a tudo o que digo? Necessidade lingüística, psicológica? É nesse momento, pensando, que sou singular? Um garoto na idade média, do outro lado do mundo, deitado nas areias da noite africana não poderia também ter pensado isso? Se eu posso pensar nele, vê-lo deitado se questionando sobre o que é existir, ele também poderia ter pensado em mim? Uma garota no futuro, a imaginar-lhe existência? Seria eu, nada mais que seu pensamento, tal qual ele é o meu? Ou talvez ainda de um terceiro, que somente agora surge? Quem é você, por que nos cria em sua mente? Talvez também busque respostas, sentido, existência. Ou então, assim como eu, principiara tentando encontrar leveza para navegar na maré do infinito e acabara por se ancorar em redemoinho.

Ela nunca gostou de pensar, mas era aqui, atravessando a insignificância aparente de seu corpo e de tudo que a rodeava que ela se criava. Um pensamento sem começo ou fim. Um fluxo constante de impressões fugazes e marcas profundo-superficiais a se recriar a cada instante; breves singularidades a explodir. Ela, mais um pensamento. Talvez seu, talvez da mente de um outro alguém. Talvezes a orbitar o espaço-tempo do agora infinito, no aqui indeterminável.

Ela.

Pensando.

Emerge.  






Créditos:
Desenhos 1 e 2, obras dos sketchbooks de James Jean. Disponíveis aqui
Imagem 3 - Autor desconhecido.