Contos de primeiro de janeiro.



Salve traça!
Hoje faço uma homenagem a um grande amigo, aniversariante deste primeiro de janeiro próximo: Herley Ito Alder, Old, o ancestral da galera. 
Há alguns anos atrás escrevíamos, Ito e eu, todo primeiro de janeiro algum conto. Os contos eram escritos por duas cabeças, não tem como explicar mais que isso. Enfim, posto agora, como um presente e uma homenagem, a uma pessoa e a uma época de minha vida. 



           2 de Janeiro

           TRIM! Gritou o relógio, rompendo com uma noite intensa de sonhos retorcidos na cama, viradas e desviradas de um lado para o outro e uma camisola, completamente molhada. 
           TRIM. Gritou o relógio, e neste breve momento Júlia soube que este; seria o grande dia.
            Neste dia, especialmente, a ansiedade não permitia o normal transcorrer do tempo, ela praticamente o parara. Seus pensamentos ora a julgavam por um crime ainda não cometido, ora lhe banqueteavam com promessas de satisfação; e glória, finalmente entrar para um seleto grupo de garotas. Assim se foi o dia, em uma luta consigo mesma.
            Até que chegou a hora, o momento passível da desistência ficara para trás. Todas as suas amigas já haviam feito isso, e de hoje em diante ela não seria mais a excluída. Santinha? Certinha? Tudo isto ficaria para trás... em breve. No entanto, que fique claro, Julia não faria aquilo pelas amigas, o desejo era o mestre, a ânsia por um fruto proibido há dominava.
            Há algum tempo que esta idéia vinha perambulando por sua cabeça, em verdade, há dias já havia planejado tudo, e agora, estava tudo ali, ao toque de seus olhos. Seu coração batia como uma locomotiva desgovernada, pronta a saltar a qualquer momento para fora de seu corpo. Suas pernas não obedeciam prontamente as ordens de sua cabeça. Afinal, onde estava ela agora, sua cabeça?
            O suor frio que descia de sua testa contrastava com o flamejar de sua pele. Sentia medo...mas também excitação
            Foda-se; estas foram as palavras que Júlia pensou no instante final, no momento em que ainda lhe restava uma gota de consciência ; estas são as palavras que todos nós pensamos em momentos como este.
            Alguns segundos foram necessários, uma longa respiração, uma forte ingestão de ar e coragem no corpo para então tocá-lo. Firme, forte, grande, não! Era enorme, bem maior do que em seus sonhos, deveras maior que na sua imaginação infantil e isso, definitivamente, a assustava. Um última vez olhou para trás, tomou força e subiu.
            Era tarde demais,o sinal do colégio avisava a todos que estavam dispensados, podiam ir embora, logo, não havia mais a necessidade, o desejo, a proibição, o medo, o prazer em se pular o muro. Júlia retornou para o pátio da velha escola, tomou a direção do portão de saída e jurou. Jurou que amanhã conseguiria pular o muro...e esta ainda não foi a última vez que ela jurou, tão menos a primeira.

Camada externa do ser; pele.


Epiderme




I
- É questão de sentido, a angústia está sempre presente, a menos que estejamos ausentes, eis onde entra a fuga. Todos, à sua maneira, fogem. Não sou diferente, utilizo o álcool.
            - Sim, como quando nos cobrimos em noites de verão, temendo monstros imaginários?
            - É! Mas o desconforto não é o mesmo...
            - Não consigo acreditar em você, pode até ser verossímil, sabe? Toda esta mania de ter que criar uma explicação pseudo profunda para tudo em sua vida, de agir sempre de acordo com um sistema de valores pré-estabelecidos, mas comigo não cola, te conheço a tempo demais.Não há idealismo em bebedeira; fato!

            II

-Tenho vivido números ao invés de dias. Anseio sentir, mas em minhas costas pesam séculos. Isto: tempo, vida. – Você me disse, como se por óculos tivesse a cegueira. E assim, a tolice ficou entre nós, unindo o oposto outrora cindido.

            III

9h45 em seu relógio, o que indicava que no resto desta região seria algo próximo às 10h, fato que absolutamente não significava nada. No norte do país, duas horas a mais e na Rússia? E na Austrália? Existiriam mesmo estes lugares?  Em sua cabeça eram só conceitos, vazios, colagem de imagens em palavras.
Hoje, nem ao menos é hoje no mundo inteiro, em alguns lugares ainda é ontem, em outros amanhã, mas todos, à exceção de Alberto, assumem este exato instante da existência como o Hoje. E então?
Alberto altera o horário do relógio, retrocede quinze minutos, mudando superficialmente seu tempo.
Quinze minutos atrasados, na maior parte do tempo, garantem que você não será o primeiro a chegar. Você atrasa seu relógio, mas é você que se torna um atrasado.

(
Aqui cabe uma explicação um pouco mais verborrágica:
Existem pessoas e coisas, mas as coisas não se atrasam, somente pessoas.
Existem pessoas e coisas, e ambas quebram, só que você não deve dizer isso! Quando uma pessoa quebrar diga: vai passar, vai melhorar, ou, ela está em um lugar melhor. Nunca a trate como uma coisa, embora, essencialmente, as pessoas sejam não passem de um tipo coisa.
Pessoa é algo que não existe, todos tem nomes, e, na maior parte do tempo, preferem ser chamados pelo nome, isto tem algo a ver com a identidade, e tudo a ver com a angústia.
Um nome basicamente garante uma certa dose de conforto, oras, você não é mais um anônimo qualquer. Sua vida, num horizonte milenar, em meio a uma imensidão de pessoas ganha um grãozinho de identidade; um nome.
Nome - vigilância 24 horas que protege da evidente insignificância de viver boiando em um mar de pessoas.
Existem muitas maneiras de escapar da angústia.
Existem pessoas e coisas, chame as pessoas por seus nomes e nunca, nunca, nunca diga que são coisas, pois assim, em um efeito reflexivo, inauguraria sua própria casa da angústia.
)

IV
Lá fora escuto bater de asas, um pardal, um pombo, um morcego, não sei se é dia ou noite. Fossem sinceras asas de fada à minha janela, ainda não me moveria. Hoje, sol ou lua, tudo é externo, nada me moverá.

V
Uma criança chora para ter o que quer. Chora mais e desperta a atenção de todos. Chora mais e irrita os pais. Chora mais e consegue o que quer. Plástico, em forma de uma pistola; dentro um suco qualquer. A criança toma a doce mistura de corantes e água com gás. Raso, sem sorrir, joga fora o “brinquedo” meio vazio.O pequeno e jovem ser humano não nota o outro exemplar de sua espécie adiante. Um rapaz no canto, à sombra, talvez depressivo, pronto a estourar os miolos, mas isso, não tem nada a ver com essa história, é profundo demais.








Créditos da imagem: Absoluten Calfeutrail de Moebius.



Números 3

Salve traça!
É com prazer que posto Números Ed.3! Pois é, tudo que é ruim perdura mais do que deveria, já dizia o senso comum.
Nesta edição conto a história dos "13 Macacos", façam o Download.



 Download: Número_ed.3


Créditos desta edição:
Quadros de A piada Mortal, roteiro de Alan Moore e arte de Brian Bolland.
Trechos de Os Sertões, de Euclides da Cunha

Por sinal, apreciem aqui um trecho, deveras belo, na íntegra.


Higrômetros singulares

            Não a observamos através dos rigorismos dos processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colunas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado, uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho A coronha da mannlincher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixará-o ali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia o turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absolto mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Vanderlei; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos . Ficou quase em pé, com as patas dianteiras frimes num ressalto da pedra...E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as crinas ondulantes...
Quando aquelas lufadas, caindo às ubitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto: cada partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.
Fora disto – nas longas calmarias, fenômenos ópticos bizzarros.
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se para os descampos, ao longe, não se distinguia o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil , e não distinguia a base das montanhas, com que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse e refrangesse e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes.


 Excerto de Os Sertões, de Euclides da Cunha.



Funeral em mármore




 "Declaro:
Aos homens de bom gosto caberá o lamento silencioso neste breve minuto, assim como o capuccino servido em certezas rotineiramente silenciadas. Confrades, é conveniente que finjam se importar, não pelo homem que se foi, mas para que se mantenham treinadas as lágrimas em seu rolar. A morte, fato que aqui se impõe, de nós nunca cobrou a dádiva do silêncio, no entanto, o instante clama por dramaticidade. Logo, passo agora a ler versos parcos, abandonados em vida pelo nosso cadáver."



Estátua

Ele, Vêersuos e Sientimmentuos inteiros,
Eu, trôpego sorrio de soslaio, matreiro.
Ele, guardião de Iddiéias e Ideails,
Eu, contemporâneo de anos, sem mais.
Ele, abraçado nacionalmente por lágrimas,
lápide rebuscada em limo, em mármore.
Eu, salva um café,
a ausência de minha existência.

E fique dito:
Ele, há perdurar,
Eu, nem mesmo o chorar. 










Crédito das imagens: Quadros de V de Vingança, roteiro de Alan Moore e arte de David Lloyd

Profanação


Salve traça! 
Aproxima-se uma encruzilhada em minha vida e, se tudo correr de acordo com meus planos, em breve seguirei a meta de um post por semana, não que este fato melhore a qualidade deste estante abandonada por natureza, mas...



                         Profanação



Gira a chave, ergue o som, pisa forte. A vibração do motor veste o carro todo, sentado ele sente a potência que finge estar sob seu controle, não há o que fazer além de cruzar as ruas do bairro da elite financeira da cidade com a violência de um grito; sem pavor. Se Deus fosse uma máquina, certamente seria uma F-40, um clássico inegável, assim como a bíblia, tal qual Sade.
Tenho amigos que dizem ter travado contato com o demônio, extraterrestres, anjos e espíritos diversos, no entanto, a F-40... - Distraído em seus pensamentos ele perde o ponto da curva, sobe a calçada, bate em um portão, tem a impressão de  atropelar alguém ou talvez seja só o efeito da adrenalina produzida sem controle, a emoção da blasfêmia, o desafio aos deuses.
Pensa na infância, nos sermões que lhe vetavam a utilização do corpo de cristo, nos anos perdidos na dualidade entre interior "seu", e corpo "emprestado". Muito tempo passou até que percebesse que o padre falava somente de masturbação, já era um homenzinho crescido, e isso quer dizer: tarde demais, logo, cresceu temendo o próprio corpo. Escapista, tinha em seus desenhos a fuga. Representava o santo corpo com chifres, membros disformes, olhos a mais; profanava a imagem e isso era pecado, bem sabia, no entanto, a mudez do sacerdote, sobre este assunto especifico, proporcionava-lhe a serenidade de prosseguir sem ser atormentado por promessas de futuras torturas infernais. Assim, na infância; velhos anos, a ânsia pela profanação já se manifestava.
Adulto, possesso de outros deuses, desafia-os também, por costume ou indiferença, mantém na consciência a ausência das penúrias futuras, aos pecadores reservadas. Não que faltem sacerdotes e sermões, rodeia-nos a certeza da queda, caso a crença falhe, porém a música que ele escuta é alta, sem tempo para ameaças acelera nas largas ruas dos bairros nobres. Inebriado no êxtase da razão nosso motorista visa campos elíseos além da monotonia cinza dos sonhos cotidianamente reprisados nos telejornais. 

Sobe o som, uma mão no volante e a outra na alavanca do câmbio, imaginando-se representação made in projac de ladrão de carros, ele ri. No centro da cidade, vislumbra nos olhos miseráveis o reflexo do relâmpago vermelho. Semblantes misto de desejo e medo retratam a imposição do poder divino ao exercer sua violência sobre a vida rotineira: a Ferrari.
Em um posto de gasolina, jovens se reúnem no frenesi alcoólico em busca de diversão, ou quem sabe, redenção? Uma memória levanta-se: onde mais de um se reunir em meu nome estarei presente; deus vai onde a fé está, algo assim. Freia bruscamente, atinge um garoto, ao invés de desculpas lança a chave do carro para o corpo caído – Olha a Ferrari para mim, já volto. Onde havia sorrisos e verborragia agora reina o silêncio, a emergência do sobrenatural em alguns casos gera a catatonia. Na loja de conveniência ele pega tantas garrafas de vodka quanto pode carregar. Ao pagar percebe que esqueceu o cartão na Ferrari, abraçando as bebidas sai para pegar; quem desconfiaria de tal pessoa? Para aqueles que o contemplam distribui algumas garrafas, o sangue de cristo, as restantes joga no banco da Ferrari, retoma a chave e sai acelerando. Euforia e excitação, todos se sentem renovados ao ouvir novamente o canto angelical do motor. Mesmo a atendente, que terá que pagar o valor das garrafas de seu salário, sorri. Palavra do senhor, o milagre do divino transcende a alcunhada racionalidade das palavras, permanece somente o gesto de adoração, o coração arrítmico, os sorrisos, um coro deles.
Com a atenção dividida entre abrir as garrafas e dirigir na maior velocidade possível ele prossegue, corta por meio do mar de carros injetando vida na velocidade estagnada do vai e vem contínuo nas artérias da cidade. Os bancos de couro da Ferrari são ungidos com água benta russa, um devido mergulho no sacramento. Não seria exagero apontar o pecado da gula, no caso por salvação, ao qual estes acentos se submetem ao banharem-se de tal desregrada maneira.
Ao longe, nos limites do horizonte, um elevado se anuncia sobre a pista, a terra prometida. Uma olhada no velocímetro indica 180 quilômetros por hora, a medida da liberdade. Lúcido, nosso motorista não pretende se sacrificar, diminui o suficiente para o cavalo de pau não ser fatal. É a hora! Próximo ao elevado ele executa a manobra, o carro gira e a adrenalina dispara, frente e trás, direita e esquerda, os lados dançam ao som dos pneus gritantes, o odor de borracha queimada traz consigo um sorriso de quem mesmo tendo mordido a língua no derradeiro momento desfruta satisfação. No entanto o tempo é curto e o gozo deve ser adiado. Zonzo ele corre em meio a frenagens inesperadas executas por motoristas assustados com o objeto sacro que irrompeu no meio da avenida.
No alto do elevado que cruza a estrada, cujo fluxo de veículos está impedido pela Ferrari, ele se senta para observar o culto indignado que se ensaia abaixo. Do alto, ele ouve as sirenes dos anjos da ordem se aproximarem. Contemplando o caos ele rasga um pedaço de sua camiseta, banha o tecido em vodka e coloca feito um pavio dentro da garrafa, improvisando assim um tosco Molotov. Do alto, ele aguarda o suficiente para que a racionalidade transcenda para irracionalidade, não demora para que o caos se instale. Calmamente ele acende um cigarro, encara o fogo, lembra-se dos inquisidores que conheceu via livros de história, mas a sua chama não provém da indústria da crença, não é a sarça ardente do deserto, é tecnologia e natureza. Leva o cigarro a boca e traga profundamente o veneno de seu tempo, para então acender o pavio. Do alto, ele lança a garrafa dentro da Ferrari e o que era chama é agora fogueira. Fogo; ponte entre o sacro e o profano. Da esfera do divino a Ferrari é lançada de volta ao alcance do tangível: profanada. Não há devoção perante um carro queimado, metal retorcido tal qual quaisquer outros veículos.
Não é necessário muito esforço para despistar os policiais engordados pela rotina. Com cabelos longos e enrolados, roupas rasgadas e corpo sujo é fácil adentrar a comunidade de vagabundos que se amontoa embaixo da ponte em meio a sombras e ratos.  Oferece alguns cigarros e compartilha a imundície e invisibilidade daqueles que à margem desfrutam de camarote da demente celebração, ou melhor, profanação.



Créditos: Ranxerox: Stefano Tamburini, (roteiro e arte), Alain Chabat (roteiro) e Tanino Liberatore (arte).

Números ed.2


Salve traça!
Na página de Downloads já está disponível a segunda edição de Números. 
Lanço aqui o inicio do conto, que se chama Cara e Coroa.
Espero que apreciem estas letras especialmente envelhecidas.




Cara



    Dedicação e entrega total a religião tais foram as escolhas de João, que neste instante revisava mentalmente as dádivas alcançadas devido ao apego às suas crenças. A casa no condomínio de alto nível, o carro importado, a filha prestes a nascer, a mulher com quem se casara, no entanto a enunciação cíclica de recompensas não afastava seus olhos dos jovens seios a sua frente, tenros, pêssegos implorando pela colheita, sua boca compactuava com a imagem mental,  paladar excitado; deguste do desejo. Casa, carro, mulher, filha, filha e coxas magras brilhantes, ainda em desenvolvimento, entregues a admiração, ofertadas ao deleite. Como podia usar uma roupa tão curta? Casa na praia, moto de mil cilindradas, férias na Europa e uma calcinha rosa, seria ainda decorada de ursinhos? Ou seriam estrelinhas? Ela já superou a temática infantil? Sítio no campo, apartamento na capital, mas teria ela pelinhos? Loiros, tal qual os cabelos? A mesa de mogno recebia carinhos enquanto a boca salivava.
    - Somente deus pode ajudar seu pai, minha criança. Não somos uma instituição de caridade, você tem idéia de quantas pessoas vem aqui pedir dinheiro?  - questiona o jovem pastor de dentro de seu elegante terno.
    - Mas pastor João, se meu pai não tomar estes remédios...
    - Somente o caminho do senhor leva à salvação. As portas na vida de seu pai se abrirão se ele buscar a presença daquele que tanto o ama. Nosso senhor Jesus Cristo acolhe aqueles que adentram sua casa. Traga seu pai ao culto e vocês serão abençoados.
    - Como ele virá ao culto morto? - as palavras tropeçam na língua da menina.
     Cabisbaixa Sônia mergulha na visão de seus chinelos amarelos. Seus cabelos loiro-encaracolados resplandecem de juventude. Sua mão, inquieta, corre as coxas, como se uma coceira fosse o problema.
    - O senhor não pode ajudar, somente dessa vez? – sussurra.
    Carne vermelha, quente, os olhos do pastor invejam as pequeninas mãos, anseiam por tocar aquelas coxas que as unhas marcadas pelas tarefas diárias coçam. João, incapaz de manter o olhar, abaixa também a cabeça. Encara-se a frio, reconhece o homem que escolhera representar e responde.


    - Sônia, talvez você seja muito jovem para entender, uma garota ainda, mas compreenda, somente duas pessoas podem ajudar a seu pai: deus e ele próprio. Se eu desse dinheiro a seu pai não o estaria ajudando em nada. Ele precisa abrir os olhos e aceitar o caminho de deus.
    As palavras do pastor ecoavam em Sônia, eram conhecidas, como se viessem sendo repetidas há tempos. Um falatório que não lhe dizia nada, “coisa além”, incapaz de conexão com a vida cotidiana de uma garota de12 anos que cuidava do pai, bêbado e doente. A única certeza que a menina detinha é que precisava de ajuda, e talvez, fosse sua responsabilidade tomar o controle da situação. Àquele par de límpidos olhos morenos não servia a inocência, que tão bem vestia o corpo em promessa de flor.
    João levanta-se, caminha até a estante onde uma bíblia ilustrada decora o ambiente. No caminho repara no pescoço de Sônia, na nuca exposta pelos cabelos presos, sua boca se manifesta, novamente. Folheando a bíblia ele busca fuga, precisa ofertar palavras sábias, é o mínimo, mas a memória lhe foge. Inesperado, o abraço da menina o arrepia. A garota se aperta contra seu corpo e um cheiro de produtos de limpeza sobe-lhe ao nariz. De olhos fechados respira fundo, um erro, na escuridão a mente exibe o filme que os olhos anseiam ver. Na barriga sente os seios ainda em formação da criança, abraço apertado, segundos de prazer, a ereção é impossível de ser disfarçada. Precisa se desvencilhar.
    - Se quer ajudar seu pai traga-o ao culto esta noite. Isto é tudo, agora tenho de tratar de outros assuntos. Adeus.






Continue lendo>>>>Download Números_ed.2
Crédito da imagem :Tamburini - Ranxerox.

Downloads


Contos 



         Números ed.4


  
Lista de Créditos:
Contracapa: Painel presente em Assim falava Zaratustra de Thais dos Anjos.
Páginas 1, 2 e 3 - Charges de Rafael Sica, presentes no extraordinário, Ordinário


 



         Números ed.3



               Download


        Números ed.2

               Download

Lista de fontes das imagens: 
Capa: Lourenço Mutarelli - Desgraçados.
Página 3 -  Tamburini - Ranxerox.
Página 4 - Mickey Mouse.
Página 7- Lourenço Mutarelli - Desgraçados.
Página 11- Kipper - Democracia- Front 7




            Números ed.1




           Download

Lista de fontes das imagens:

Capa: Lourenço Mutarelli- Transubstanciação (Link para download abaixo).
Página 8- Antonio Gallonio .
Demais images: Devianart.


 
                Homens Duros


                  Download



                  Casinha Branca

                   Download





Quadrinhos





Transubstanciação - Lourenço Mutarelli
 
             Download

Números ed.1

Salve traças!
Hoje estou começando um novo projeto, é uma pequena publicação que distribuirei em minha cidade, chama-se Números. Na primeira edição publico um conto chamado Bílis Negra, o qual posto o início logo abaixo.



  
       Bílis Negra

“Para onde quer que se dirija a intenção assídua da alma, para lá afluem também os espíritos, que são os veículos ou instrumentos da alma. Os espíritos são produzidos no coração com a parte mais sutil do sangue.” Ficino



Lento, afago após afago, o vento o marcou. Calmo, carícia após carícia, o mar o penetrou. O que fora castelo, com tanto esmero edificado, agora era areia; e cada grão trazia consigo, na memória, o retrato de um passado de união. Maria e Maria na sala de sua casa. Maria e a fumaça do cigarro sendo soprada para longe da visão. Uma estante empoeirada, velhos livros, caixas de remédio, o reflexo do sol poente na TV desligada, o teto definhando frente à umidade; Maria e a contemplação. Era uma vez, uma mulher que construiu um castelo para no futuro, perdida na névoa do passado, se perguntar: Em qual gaveta estará aquele retrato de família em que ainda sorríamos? Quanto tempo os sorrisos idos resistirão às traças do presente? Um novo trago, mais fumaça para os pulmões e a imagem do castelo transfigura-se em frio e umidade; é uma masmorra abaixo da superfície, um calabouço de solidão onde carícias e afagos não chegam. Apatia e insensibilidade e mais um trago. Castelos: torres altas, fortes muralhas,  opulentos salões, o necessário para ocultar a escuridão trancafiada sob nossos pés.
Incapaz de conceber o incorpóreo, Maria revê a o imenso abutre que se posta à janela. A silhueta da ave apaga o sol poente daquele velho rosto abandonado na sala. Palavras e fumaça saem juntas da boca da mulher:
- E retorna o anjo negro.
- Nunca me repito tão menos retorno, minha existência é sempre única. Estou aqui para cumprir meu destino assim como você cumprirá o seu. – diz o abutre com uma voz velha e esganiçada.
Um novo trago e impérios caem; crianças viram homens, que por sua vez guerreiam para se tornarem pó; corações se partem feito areia tomada pelo mar; uma velha deixa algo frágil cair, algo raro, inexistente; lágrimas deitam por terra opressor e oprimido; um grande incêndio se extingue com uma chuva torrencial; à sombra de um enorme abutre, uma mulher, em seus quarenta anos, observa o filme exibido pela fumaça expelida de seu pulmão. Uma última vez, ela vagueia os olhos pelo teto amarelo da casa alugada e por fim consente.
Um cigarro é apagado no encosto de braço da poltrona.  
- Leve-me, nada pode piorar.
- Você tem de vir até mim, não o contrário.
Com o abraço da imensa ave o frio tomou-a. E assim foi a partida para o reino esquecido, onde teria seu castelo, seu trono, sua majestade.
Atrás de cada lágrima contida há um reino esquecido.




 Caso tenha se interessado, você pode fazer o download de Números, ed.1 aqui e conferir a história completa.


Créditos: O quadro acima pertence a Ludwig Meiner, para saber mais sobre o artista, ou realizar o download de suas obras clique aqui.

Silencio

Salve traça!
Esta poesia é uma homenagem ao tédio de André Bianc.


"nINGgUÉM AINda eSTÁ comPLetAMEnte MoRtO, Mas DigAMOS qUE a HoRa SE aPROxiMA." x

Silencio

  
Segundos arrastam-se em minutos,
minutos rastejam pelas horas,
horas submergem dias e noites,
e noites,
Semanas, meses, anos, década, séculos, milênios...
O vazio em     m   o   v   i   m   e   n   t   o.


Não há calendário a marcar a ausência
Relógio a cronometrar a agonia
Adiantado, atrasado?
Jorra incessante sangria!

E aos loucos olhos abertos,
arrepia a consciência,
de que o tempo,
é a doença da alegria.

tu és o ritmo desta poesia. 




Créditos: 
A imagem é um painel de Desgraçados, de Lourenço Mutarelli, por sinal muito mal digitalizado, é uma pena. 
PS: Não gosto dos dois últimos versos, principalmente da rima que surge. Quero retirá-los mas não consigo; aceito sugestões.


                       
                                           

Homens Duros, Parte III

Salve traça!
Posto a finalização do conto Homens Duros, quem quiser fazer o donwload do conto completo é só clicar aqui.
Gostaria de dedicar esta meia dúzia de palavras, que tentei amontoar em um conto, aos amigos: Anthony Newman e Randerson Vieira Lobato. Creio que cada um deles saiba a razão da homenagem.





                                                 Parte III – Noite


Taubaté, 29 de abril de 2012.

            Era a noite mais fria do ano, mas todos os anos têm a sua.
Repetição = banalização.
José Dias, após oito anos na cidade, finalmente retornava para roça e seus amigos, ou ao menos as pessoas que mais se aproximavam da dignidade deste termo.
Entre brindes de pinga a memória fluía, removendo a dura crosta que fomentava o silêncio criado pelos oito anos de distância. O papo passeava solto das tardes de pescaria infantis às cicatrizes de amor e dores nas costas presenteadas pelo envelhecer. Homens se reuniam e celebravam o retorno de um amigo, mergulhando profundamente em um turvo redemoinho alcoólico. Sorrisos desfilavam orgulhosos naqueles velhos rostos marcados pelo sol da luta diária, cinco homens; cinco máscaras de pele seca. Banhados pelo cheiro da carne assando e pelo frio da noite, cada vez mais se lançavam em brindes. Não tardou para bebedeira permitir que as línguas se desinibissem, trazendo ao ébrio ar noturno assuntos que há muito deveriam permanecer sepultados. 
            - E o filhão seu Zé, casou? – O velho rosto de seu Camilo, duro e seco, revelava a amputação operada pelo sol da lida diária com a terra, não havia expressão naquela face.
             Os outros três homens mataram rapidamente um gole da brava, a seu modo executavam o “nome do pai”, nada de bom sairia desta conversa.
            - Meu filho é policial agora seu Camilo. – olhando para o horizonte abraçado pela escuridão, seu Zé disse com toda a eloqüência que sua voz permitia.
            - Que bom, meu filho também está curado, casou e tem três molequinhos “arteiros” que só vendo.
            - Meu filho é policial agora seu Camilo – seu Zé encarava a lua e sussurrava, repetia uma oração guardada no passado.
            - É seu Zé, nossos filhos foram amigos demais. Com quantos anos o Alex está agora, 24, 25? Já está na hora de casar, será que ele pensa nisso? – o velho Camilo dizia para os outros amigos da roda de bebedeira, buscava um sorriso companheiro para sua piada, mas não encontrava.
            - Seu Camilo, está tarde, aqui está minha parte da intera. Não tenho mais idade para virar a noite bebendo. – Como uma estátua, cujas cores foram amputadas pelo tempo, seu Zé se levantou, colocou uns trocados na mesa e caminhou rumo a escuridão da velha estrada de terra Pinheirinho.
Uma sinfonia de grilos dava o tom do silêncio. Longos goles foram necessários, mas ainda assim, algo permanecia na garganta, intragável.
O caminho que Zé Dias percorreu até sua casa fora curto demais para apagar a chama da idéia que incendiava seu futuro próximo. Homem criado na rigidez de um passado sem estudos e perspectivas, talhado pelo trabalho precoce e por idéias hereditárias, não seria esta noite que o velho Zé quebraria uma tradição. Seu Chico, o pai deste homem, não levava desaforo para casa, tal o é Zé Dias, seu filho, o velho que entra bufando na calma de sua casa adormecida. Sua cabeça está tomada por um passado que ficara oito anos a espreitar nas sombras de sua memória. Com toda discrição que seu estado alcoólico pôde permitir ele vasculhou as caixas ainda fechadas da mudança incompleta. De facão na mão ele contempla sua desilusão, oito anos e um mesmo pesadelo.
Dez minutos se passaram, no sitio de seu Camilo, até que risadas fossem partidas ao meio pela entrada de seu Zé Dias e seu facão.
- Seu Camilo, meu filho é homem, policial, curado e não admito suas brincadeiras sem graça. – O cuspe voava longe, conforme as palavras eram cuspidas daquela velha boca recheada de meia dúzia de dentes podres.
- Zé, meu moleque não é uma bicha, ele casou e tem filhos, e o seu?
- Seu filho agarrou meu moleque!
- Oras, o Alessandro sempre teve jeito de menininha desde criança. Estou falando alguma mentira aqui? Seu filho é policial? Muito conveniente para ele trabalhar rodeado por homens, não é não?
- Cala a boca Camilo! Seu Zé olha para mim, acalme-se. – Assim disse Arminio, um dos amigos no local, segurando seu Zé, evitando assim que o sangue de Camilo adubasse o chão.
Os olhos de seu Zé, duas bolas brancas apáticas, saltados pelo golpe recebido na cabeça, foram a visão que atormentou o velho Arminio pelo curto espaço de tempo em que viveu após aquela noite. Todas seus pesadelos foram com seu rosto refletido naquele espelho cadavérico que eram os glóbulos oculares de seu Zé dias, amigo de infância. A faísca do facão que caiu da mão do morto, a rajada de vento um pouco mais forte que bateu na porteira deixada aberta, o crepitar do fogo atiçado pelo pedaço de cérebro que voou na grelha. Arminio de Jesus, 61 anos, viu seu Camilo vindo com o pedaço de ferro na direção de seu Zé, e não falou nada, não fez nada, ninguém o fez. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos, [1] capazes de arder a fogueira do arrependimento, dia após dia.
Talvez não tenha sido assim que aconteceu, tudo pode ter se passado de maneira ainda pior. Essa história é minha catarse, meu expurgo, pois alguém tem de quebrar o silêncio, gritar se necessário: Assim morreu seu Zé Dias, pai de um grande amigo de infância.
Ao rever Alex, insensível em sua farda, o corpo de seu pai a seus pés, rindo de uma piada jogada ao vento, me questionei se realmente era aquele o garoto que viveu comigo a adolescência. Aquele policial era um homem desconhecido para mim, tenho essa certeza ao fechar meus olhos para refazer a imagem do garoto com quem cresci e descobri muito sobre a vida. Um menino, que certa vez escreveu-me uma carta que falava das saudades; sim, também sinto saudades dele.
Hoje tenho três filhos e uma mulher para compartilhar a felicidade. Minha vida não é perfeita e nunca será, mas todas as madrugadas, antes de partir para mais dez horas de trabalho, olho para meus filhos dormindo e penso: estou curado, e espero que meus filhos também se descubram curados um dia, pois a doença que meu pai e o de Alex tanto falavam, levou-os ao assassinato e a morte; sei que a moléstia que os atacou não é hereditária e isto sempre me anima a continuar. Embora haja tristeza nestas palavras, não há lágrimas possíveis para Alex e eu, tudo se passou devido a um passado anterior a nossa existência; uma doença de um tempo longínquo que não deveria mais ceifar vidas nos tempos ditos, modernos. 
            O Sol do fim da tarde banha o papel que recebe minhas palavras, acabo de voltar da cadeia onde visitei meu pai. Durante uma hora lutamos para impedir que o silêncio se instalasse entre nós, falamos de todas os aspectos superficiais da vida cotidiana, desta vez, fomos razoavelmente bem sucedidos. É com o peso da noite vindoura que termino meu relato: meu pai não se arrependeu.
           
                       



[1][1] Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis.

Homens Duros, Parte II


II – A carta

Taubaté, 15 de abril de 2007.
             
     Amigo, anos se passaram até que eu cansasse de navegar o silêncio do grito que nunca foi real; o não, o basta, o ponto que definisse a revolta. Nada muda o passado, mas neste primeiro contato que faço algo muda dentro de mim, aceito uma realidade.Talvez para mim, apesar de todas as complicações, tudo esteja sendo mais fácil. Em minha nova escola ninguém me julga, os comentários maldosos não me acompanharam, ao passo que com você, deve ser duro ter de encarar todos os dias homens que te desprezam pelo que é, ou melhor, pelo que fizemos. Sei que esta segurança que sinto é passageira, mesmo em casa onde o silêncio sobre o acontecido é a lei, como se ao ignorarem o passado ele deixasse de existir, sinto a tempestade se anunciando na esquina do futuro. Sei quem sou e conheço meus gostos, tudo retornará à tona; temo por este  dia. 

      Após termos sido pegos no velho carvalho, dias rolaram com a mesma freqüência que lágrimas sem que eu tivesse autorização para deixar meu quarto. Incessantemente meu pai refez o caminho entre minha casa e a cidade, era evidente que a mudança ocorreria, e assim o foi. O velho Zé Dias é de outro tempo; cabeça dura ao extremo, não é capaz de suportar os comentários, pois a minha escolha é uma ferida em sua própria masculinidade. Não sinto raiva de meu pai, tão menos sinto algo, minha tristeza provém do fato de ele nem ao menos ter tentado me entender. Ele nunca disse nada sobre o assunto, nenhuma pergunta ou reprimenda. Seu silêncio cavou fundo em mim, e hoje ainda vejo a sombra do sorriso em seu rosto; um riso simples que não mais tocou meus olhos. 

      Amigo, sei que não fizemos nada de errado, talvez um dia todos compreendam, mas este dia não é hoje e tão menos se precipita no horizonte do amanhã. Entendo as conseqüências que aqueles beijos de anos atrás geraram; atos pelos quais ainda carregamos as cicatrizes, no entanto não há momento em que o arrependimento passe por minha cabeça. 

      Tenho saudade de nossa rotina tranqüila na calmaria da roça.
                                                                                                   De seu amigo, 
                                                                                                   Alessandro Dias.





Ps: O quadro apresentado é de autoria de Salvador Dali, não conheço o nome da obra(se alguém souber me avise), e para mim representa muito bem as imagens díspares que podemos criar um do outro ao nos utilizarmos da comunicação escrita em geral; cartas, e-mails, seja o que for...
                                                                               

Homens Duros, Parte I

Salve traças!
Posto hoje a primeira das três partes de um conto baseado em fatos reais ocorridos no bairro Pinheirinho, região rural de Taubaté, interior de São Paulo.
Disponibilizarei as partes seguintes com uma frequência semanal.




                                             Amanhecer


Taubaté, 10 de junho de 2011.


 Belo fim de mundo, nem GPS funciona aqui. – Tais foram as palavras do tenente Hermes da policia científica, antes de cuspir seu chiclete de menta na precária estrada de terra. Do bolso de seu casaco retira uma carteira enquanto caminha em direção ao corpo estendido próximo a porteira.
- Quem foi o esperto que colocou este cobertor na vítima? Alguém que, provavelmente, ainda sente náusea ao ver um pouco de matéria encefálica escorrendo pelo crânio eu presumo. Ou então uma boa alma que se preocupa com o frio que o cadáver está sentindo?
- Tenente a vítima foi encontrada assim. – Disse o sargento Ulisses com sua característica rouquidão ao bom estilo demoníaco.
- Com o cobertor? É comovente a bondade humana, tenho de me concentrar para não chorar. Estourar a cabeça do individuo foi fácil, o difícil é abandoná-lo no frio da estrada sem cobertor?
            Não há necessidade de disfarçar a noite regada a vodka barata: olheiras, bafo, humor ácido; desistindo das aparências o sargento Hermes retira seus óculos escuros e em dúvida olha para sua carteira. Na cena do crime estão presentes três viaturas, oito policiais e um cheiro onipresente de esterco, no entanto é de desprezo que os olhos do sargento Ulisses lacrimejam ao ver um superior hierárquico perder tanto tempo para escolher o sabor do chiclete.
            - Ô Ulisses, o que você me sugere? Acredito que o de sabor canela não vai cair bem antes de comer alguma coisa. Menta eu acabei de cuspir, o que o exclui também. Melancia, fora de cogitação neste clima fúnebre, estou em dúvida entre Cereja e Frutas Vermelhas, o que acha?
            - Não é tudo a mesma coisa? – A voz de Ulisses é tão dura quanto seu rosto velho.
            - Lógico que não homem! Por essas e outras que você será sargento por mais este restinho da sua vida, enquanto eu, me tornarei um delegado. Que seja, vai Cereja. Agora me diz, este rastro de sangue partindo do corpo leva até onde?
            - Até o quarto do suspeito.
            - Surpreendente! Vamos caminhando.
            - Há indícios de que ontem ocorreu algum tipo de comemoração à base de pinga e churrasco.
            - Ulisses, passei a noite mergulhado em vodka e prostitutas, mas ainda sei o que quer dizer estas garrafas de pinga jogadas, estes cacos de vidro, aqueles copos sujos, a brasa ainda quente. Nunca te contei que me formei com louvores? Oras, desculpe-me, deveria estar agradecendo pelo seu esforço em parecer útil, no entanto, convenhamos, se você fosse capaz de resolver tudo aqui sozinho não chamariam um homem semi embriagado para vir aqui.
            -  Se terminou suas piadas senhor, podemos continuar com o  trabalho.
            - Ria homem! Era uma piada, este ambiente está muito deprê, estava só tentando descontrair um pouco. Não estou mais feliz do que você por estar aqui.
            - Senhor, o acusado alega que não aconteceu festa alguma ontem neste local, e que desconhece o fato de haver um corpo na porteira de seu sítio. Ao abordarmos o suspeito suas pernas estavam com sangue coagulado, porém ele disfarçadamente tentou limpar.
            - Relaxa, a perícia dá um jeito no sangue. Podemos entrar sargento Ulisses?
            A casa não passava de um enorme quarto que englobava todos os cômodos necessários, da cozinha à sala. As paredes eram de tijolo sem reboque e o chão de terra batida. Um chapéu, uma foice, uma enxada e um casaco realizavam a decoração do local, logo ao lado do pequeno fogão portátil, duas bocas.  Da porta Ulisses e Hermes perceberam que o quarto / casa cheirava terrivelmente a álcool. Espalhados pelo quarto mais dois policiais, enquanto um fingia utilidade abrindo a janela, o outro tomava calmamente um café quente com o acusado. Ao presenciar tal cena, sargento Ulisses visivelmente se irritou e não fosse a intervenção de Hermes, teria repreendido desnecessariamente o policial que tomava seu café.
            - Acalme-se Ulisses, venha comigo até aquele guarda-roupa para podermos ouvir a conversa.  – Disse Hermes em um tom conciliador.
            - Sabe seu Camilo, eu morei aqui no bairro quando criança. Meu pai sempre disse que o solo aqui é encrenqueiro, mas reconhece o trabalho de um homem dedicado. – A voz do jovem soldado era lúcida, cada gole do café parecia lhe inspirar uma palavra sincera.
            - Pois é, este ano espero uma boa colheita. – Respondeu o velho Camilo, cabisbaixo.
            - Eu morava ali na baixa do águaverde, no sopé do morro do saci. O senhor deve ter conhecido minha família.
            - A lida com a terra lá é difícil.
            - Tem a parte boa e a ruim. Aquela terra cria homens duros.O senhor não vai mais comer bolo? Se me permite vou pegar o último pedaço, está muito bom.
            - Pode pegar, estou de ressaca.
Este era o momento, o acusado começava a ceder e o jovem soldado Alessandro Dias notou muito bem.
- Comemorando ontem?
A pequena geladeira ligou seu motor, o sargento engoliu seu chiclete, e o soldado tomou mais um gole de café, queimando a língua, para enfim seu Camilo responder:
- Um velho amigo voltou para o bairro. Companheiro de longa data, quando crianças caçávamos sabiá para vender na cidade.
- Ele havia se mudado?
- Passou oito anos na cidade, cabeça dura, tinha vergonha de uma coisa que o filho aprontou.
- Então a festa era para ele?
- Filho, sabe o que eu reconheci nos seus olhos? Tristeza, você sabe o que é um cabra ruim para diabo. Sofreu muito nessa vida não é? Aquele corpo lá na frente fui eu que matei, meu amigo, o seu Zé. Tem palavras que homem nenhum consegue ouvir e ficar quieto. Matei mesmo, mas te digo não foi por maldade não. Meu coração não carrega metade da maldade que esses seus amigos de farda aí carregam.
Alguns minutos depois o soldado Alessandro Dias foi chamado à presença do tenente Hermes: dois metros de magreza, cabelos loiros curtos, sentado sobre a porteira, este era o homem responsável pela operação.
- Soldado Dias?
- Sim senhor.
- Gostaria de lhe dar os parabéns pela atuação junto ao acusado, não que necessitássemos de uma confissão neste caso, mas de qualquer forma você me poupou algum trabalho. O senhor interpreta muito bem, ou melhor, mente muito bem.
- Nem todas as mentiras são falsas, apenas mal interpretadas.
- Inteligente, e perigoso, este seu pensamento. Aceita um chiclete? Tem de Cereja e Frutas Vermelhas.
- Prefiro Frutas Vermelhas, o sabor levemente mais ácido combina com o ambiente.