A mulher das dunas


    Amanheça, ela pensa. Na penumbra a carícia delineia a vida daquele que está ali, seu marido. Os olhos, a orelha, a boca. A geografia desbravada pelo tempo deveria ser conhecida? Com os dedos tenta marcar fronteira, estabelecer demarcações permanentes, transformar o que é estranho em familiar. Afinal, são quase dez anos de casamento. A noite insiste em abandoná-la aos gracejos do desconhecido, da imaginação. Adentra os cabelos, agora escassos, mas ainda grossos. Na escuridão ainda são escuros, como se o ambiente parasse o tempo. Viaja com os dedos pelas orelhas, protetoras do abrigo do som. Quanto de suas palavras ali morrem? Quanto de si perde a luz naquela caverna? Detém-se à beira de um sussurro. A hora é de silêncio. Cala! Não. Agora é a única hora. No ouvido, uma declaração: amo. Segue viagem e alcança os lábios. O toque é o reencontro de velhos amigos: propício à nostalgia e fabulações de futuros. O odor traz à memória as noites onde o vinho era apenas fogo. Os olhos...fechados. Não a refletem mas também não julgam. Uma tosse, um movimento, ele se vira. Uma vez mais, as costas.  Mesmo no silêncio da contemplação, a negação perdura. 
    A manhã não chega, mas ela amanheceu. Levanta-se com dificuldade. Ainda lhe dói o ventre, as pernas, a face, a devoção, a noite. No banheiro aceita a acolhida quente da água, mas recusa-se ao julgamento do espelho, teme que seu rosto esteja marcado pelo amor excessivo que ocorrera. Perfuma-se, veste-se, penteia-se com o auxílio do tato. Está pronta? Caminha em nuvens pelo quarto, não quer roubar-lhe o sono com passos brutos. Fecha a porta com o afeto de um abraço em um velório.
     Preparar o café é a rotina que a afasta da noite. Pela janela, ela vê o dia nascer no jardim vizinho; belo. Talvez a televisão ajudasse, todavia não seria justo criar ruídos desnecessários. Pega seu celular e mergulha na cachoeira social. Desce pela tela a corrente de vida. O dedo move-se sozinho. A mente se infla, se cala. Sua existência é o agora por onde rola pacífica, ao sabor da correnteza; alheia.  
    Retorna à vida assustada com a batida da porta do quarto. 
    - Você fez o café?
    Sim, está quentinho.
    Os movimentos dele são rápidos. Deve estar atrasado. Atualmente, mesmo aos domingos, tem ido trabalhar. Os sons geram as imagens, pois ela não se levanta. A garrafa abrindo, a fumaça subindo enquanto o café cai no copo. Ele bebe, gole a gole, olhando pela janela o jardim vizinho. Planejando o dia. Tudo o que terá de fazer, problemas a resolver. Dedicado. Sente vontade de abraçá-lo, pedir que fique, agradecê-lo por tudo com o calor de seu corpo. Não. Não agora. Há muito na mente dele, sempre há. Quisera poder ajudar-lhe com algo além da disponibilidade. Poderia ceder tanto mais...Assustada, é retirada de seus pensamentos por um olhar atento.
    - Cuidado ao sair de casa. Caso perguntem, lembre-se de dizer que caiu e bateu em alguma coisa.
    Com o meneio do rosto ela concorda. Não é preciso mentir. A queda é longa e constante. A marca externa nada mais é que uma erupção; incontrolável.  
    Não sairei hoje.
  Pensa em perguntar sobre o horário do retorno, gostaria de planejar algo. Arrumar-se e perfumar-se para além da madrugada...Mas seria injusto, não?  Hesita e se contém. Além de ter de trabalhar tanto para sustentá-los ele ainda tem de se preocupar com o horário do retorno? Ele precisa se preocupar ainda mais com ela?
    Em suas divagações percebe que só lhe restou o vento. Ele passou apressado, bateu a porta. Ela levanta-se, ainda há tempo de uma despedida pela janela. Seu caminhar é rápido. Abre levemente a cortina, se ele olhar a verá.
    A vizinha o aguarda no jardim, o trabalho dela é no caminho do dele. Abraçam-se com um sorriso de bom dia. Lembra-se da voz de sua falecida mãe: ele é muito educado, né? Sim mamãe, é. Entram no carro e partem. Ele não olha para trás. O sol os acompanha, tão cedo.
   Sobra-lhe o vazio a pressioná-la contra a janela. Sente vontade de algo. Tem ânsia. Queria dizer, fazer... Falta-lhe uma palavra para demarcar o que está ausente e ao mesmo tempo a rodeia, comprimindo-a, ditando os limites de sua existência. Sente que há uma teste e ela foi reprovada, pois sua vida é toda pautada em terras a ela hostis; selvagens e arcaicas. Pode ser isso existir? Não sabe. Ela sabe. Não consegue dar forma ao vácuo que lhe tira o ar. Chega!, pensa.
    Ao menos respiro, portanto...vivo? Vivo.
   Há muito o que fazer. Abre a janela e o vento a toca. Sente o mar, o infinito, as possibilidades...de felicidades. Ali, no horizonte. É isso! Com os pulmões cheios dirige-se ao quarto. Tem esperança que não haja sangue no lençol e no piso.  
   

  Arte de: https://www.milesjohnstonart.com/