O ato de Helena.

Silêncio.

O tédio e o cheiro de mofo trazem consigo lembranças nostálgicas de uma infância embolorada na memória. Meu irmão, hoje empresário milionário, naquelas tardes amarelas não passava de uma sombra do outro lado do corredor da velha casa de praia. O chão, todo em madeira, brilhava; marca do zelo de mamãe. Do outro lado do corredor ele vinha: o carrinho. A miniatura de qualquer carro de luxo da época era lançada por meu irmão, com toda força de seus músculos em desenvolvimento, em minha direção. Eu o pegava e lançava de volta. Essas eram as tardes na casa de praia em meus primeiros anos: sem praia ou prazer, lágrimas ou risos. Ah, aquelas tardes...talvez nem fossem tardes. As coisas eram assim, não havia no que pensar. Imersos na correnteza do tempo, fomos levados, dia após dia, para longe daquele corredor.  

Hoje ainda há garotos que lançam seus carros em minha direção. Embora a brincadeira seja outra, também não há sorrisos; tão menos prazer.O chão não é de madeira, mas nele há brilho. Tudo aqui brilha e se disfarça de limpo. Há necessidade de transparecer limpeza. Como as câmeras não captam o cheiro de mofo, ninguém se preocupa com ele.


Somos três agora. Duas garotas e um garoto. Observo-os brincando; lá fora e aqui dentro. Toco-me com a leveza de uma lembrança. Enxergo novamente as ondas pela janela da velha  casa de madeira. Enquanto eles se divertem eu os observo. Ele me chama, chega de diversão solitária. Ele quer brincar comigo agora; é minha vez.
Flashes se tornam relâmpagos, relembro de um medo infantil. Vejo-me nos braços de meu pai, o aconchego que tal abraço trouxera outrora agora é apenas calor e suor; transpiração. Sinto falta de meu pai. Seria ele me olhando através daquelas lentes? Sua ausência me preenche, um gemido escapa. Viro meus olhos, vejo o teto, a parede branquíssima. Escuto uma voz de autoridade, é um elogio: “Continue assim Helena, está lindo”.
Estará a casa da praia abandonada? Vazia, suja? Talvez invadida ou demolida? Existirão ainda crianças brincando nela? Continuando a jogar brinquedos de um lado para outro do corredor, imersos no tempo...passando o tempo. E o chão, como se manteve limpo sem mamãe? As crianças vão destruí-lo; tenho certeza. Não há mamãe, não há papai, não há ninguém que impeça esses garotos desconhecidos de jogarem o carrinho cada vez mais rápido, cada vez mais forte. Bando de brutos,  assim vão estragar o chão de madeira. Arranhá-lo, manchá-lo. Danificá-lo sem volta. Parem! Preciso fugir dessas imagens.
Penso em meu pai. O que será dele? Ainda há carne em seu corpo? Ou será ele apenas um punhado de ossos protegidos do abraço da terra pelo melhor caixão que o dinheiro de meu irmão pôde comprar? Onde estará aquele que amei, embaixo da terra? Com deus? Aqui, dentro mim? Sinto dor. Olho para o céu e vejo somente teto. Abraço-me ao ator com quem contraceno. Olho em seus olhos; busco vida. Rasgo sua carne com minhas unhas, descubro sangue; quente. Ele me inunda. Calor, dentro e fora de mim. CORTA!
Sinto frio.
O diretor me elogia à distância com um aceno de cabeça. Não valho uma palavra? Meu parceiro não está tão grato. Reclama, mostra o sangue que escorre pelas suas costas. Tudo pela arte querido. Ele retruca – Estamos na indústria da masturbação e não há beleza na porra – enquanto sacoleja seu brinquedo, agora molenga. Eu sorrio indagando – Por que não? A pergunta fica em minha cabeça. Ganho o aconchego de uma toalha branca e a promessa de limpeza feita por um banho quente.
Vapor e água quase fervente. Meu pai me limpa. Ensaboa meu corpo rapidamente, sou mais uma de suas obrigações intermináveis. Suas mãos são grossas, calejadas do trabalho diurno na oficina. Sem carinho, mas com cuidado, ele me lava tal como uma peça de carro de um cliente qualquer. Desde a morte de minha mãe tudo tivera que se tornar rápido e distante, ele não faz por  mal. É assim que tem de ser. Carinho se tornara uma especiaria que não tínhamos tempo suficiente para usufruir. Limpa, punha-me a esperar o jantar assistindo TV.
Meu pai morreu e estou suja.
O barulho da descarga me lança à realidade. Não tinha percebido que estava acompanhada. De volta ao presente, a pouca felicidade com que me ensaboava começa a perder o efeito. Sei, com toda a certeza, que nunca superarei a morte de meu pai. O tempo, dizem, cala as mais dolorosas feridas. Não sou capaz de acreditar, tudo lembra-me ele. Sim, sou dramática. Algum problema? Todos, mas o relógio não para.
Horário para chegar, comida para fazer, sorriso para usar. Visto-me rapidamente e pego o dinheiro com o Rubinho. Falta uma parte da grana. Reclamo. Semana que vem pagamos tudo. Xingo! Mandam-me reclamar no sindicato. Cuspo. Engulo.
Pego um táxi para casa. Ao ouvir o primeiro comentário a respeito do clima peço silêncio. Hoje não. Viajamos breves, cada um em seu silêncio. Peço que pare no bairro vizinho ao que moro. Assistente administrativa não tem dinheiro para ir de táxi para casa, tem?
Caminhar me faz bem. Oxigena o cérebro. A leve brisa do fim de tarde leva-me longe. Distancio-me dos carros, das buzinas, da vida ao rés-do-chão. O toque delicado de uma teia de aranha em meu rosto subtrai-me das garras da gravidade e me coloca a levitar ao cálido sopro do ar. Os cheiros e dissabores do chão não mais me tocam. Levada pelo vento vou-me veloz até a outra vida: dona de casa, das 18h as 24h. Entro pelo buraco da fechadura. Silenciosa, leve. Vejo meu marido. Espanto. Odair vendo pornô? Está a me ver. Ele me vê. Intrigada, com sabor de alívio e felicidade na boca, apóio-o me na porta em busca de sustentação enquanto ele caminha em minha direção. Finalmente saberei sua reação. Ele me toca; me toca dali. Suja, nojenta. Puta ordinária.  
Jogada para longe rolo pelas escadas; dura. Não respondo aos seus insultos. Após alguns instantes caída me levanto. Calo-me em voz alta. Enquanto desço as escadas penso em tudo que poderia ter lhe dito e não o fiz. Suja, nojenta? Oras, já passou por sua mente desvalida que talvez eu goste do que faço? Você seria capaz de compreender isso? A sujeira que sinto cobrindo meu corpo só existe pois foi jogada por suas palavras, por seu olhar, por seu pensamento manco.Puta ordinária? Oras, sou atriz! Sou tão atriz que tenho fingido ser feliz ao viver esse papel secundário, que o seu intelecto “superior”, de “escritor”, me elencou. Sou atriz sim, e é minha atuação que tem sustentado as histórias que você não tem produzido ao passar o dia todo a reclamar do “estado das coisas” de bar em bar. Grande provedor de folhas brancas, vazias: eis você! Esses seus sonhos, jogados sobre a escrivaninha, sobre o papel, nada há de real neles. E ainda assim eu os financio; seus devaneios de fantasia. Sim, sou eu quem pago tudo nessa casa, da comida na mesa à cerveja no copo para você se descontrair. Relaxar? Do que? Sim, sou atriz, e acabo de engolir tudo isso que poderia lhe dizer. Em engolir sou boa, não?  
À portaria do prédio onde vivo meu monólogo silencioso é finalizado abruptamente; sem minha permissão. É o seu Zé, o dono do prédio. O aluguel está atrasado demais para o velho se dissuadir pela minha aparência transtornada. Sou breve - Aqui está o dinheiro seu Zé, mas não fale para o Odair quem pagou, por favor. O velho me responde com um sorriso de canto de boca e um abraço. Um abraço. Sua magreza me permite sentir seus ossos, sua coluna torcida pelo tempo, suas mãos trêmulas. Abraço-o com carinho. É uma troca de favores: ele pensa que o estimo e eu relembro o abraço de meu pai.
Saio sem destino. Voltarei amanhã, talvez. É provável. Odair está batalhando com seu orgulho agora, mas a fome e o tesão sempre vencem essa batalha, basta tempo e paciência. Sento-me à porta de um prédio em construção. Observo um enorme caminhão despejar concreto em uma tubulação que se eleva até o ultimo andar em construção. As maravilhas da modernidade tecnológica, as aberrações da humanidade. Concretar o céu, criar terra firme no ar. Tolice. Lá, no alto, homens trabalham nessa abominação. Vê-los me força ao chão. Tenho ânsia. Deito-me.
Um bueiro; o abismo me acolhe. Em meio a baratas e ratos retorço-me em vergonha. Vejo meu pai e Odair se aproximando. Como pude trazê-los aqui? Como justificar que me deito na sarjeta? Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Dissolvo-me rumo aos esgotos onde não há luz para revelar meu corpo sujo. Lá em cima, onde ainda há iluminação, os vejo. Rastejo para onde não há sombras. Fecho meus olhos com força, para fugir de seus olhares carrascos. Tampo minhas orelhas para não ouvi-los, mas suas vozes inquerem-me, mesmo aqui. Quão mais baixo preciso ir? Quão mais suja preciso ser? Calem-se. Deixem-me. 


            
              Ser. 





Crédito das imagens: Marion Fayolle