A insustentável nobreza de ter.


Salve traça,

Hoje começo a postar um conto que, dividido em capítulos e seguindo com a periodicidade semanal, devo terminar em dezembro, às portas de papai-noel. Logo, a conclusão é: se não gostarem, nos vemos mês que vem...




A insustentável nobreza de ter. 



Parte I - No beco.


Há tempos não chove. O calor não é insuportável, é o de sempre. Falta comida. Não há serviço. A dignidade persiste, envergonhada. Junto do que me restava de dinheiro foram-se os amigos. Vendi o carro, despejaram-me de casa. Filha e mulher partiram sem adeus. Resto. Sobram vontades e desejos. Cada corpo que se desvia de mim é um outdoor vendendo o que não posso ter, ser. O cheiro? Não ligo mais, o fedor se tornou comum, é  o mundo que estou:




Estou manco, uma de minhas pernas apodrece. Nada a fazer? Esquece. Este não é o fim do mundo, acredite. Estou assumindo uma perspectiva positiva frente aos fatos. Por que não tentar?  Esta carta é mais um passo de retorno ao topo da montanha. Voltarei a beber felicidade dentro do ar refrescante das noites em quatro paredes. A mudança está em mim, questão de força de vontade. Consegue entender?

A cidade tem crescido, os imóveis se valorizaram, o progresso chegou, até os becos mudaram. Os anos que me esperam piscam gloriosos, logo ali, à frente. Talvez ano que vem já possa visitar meu irmão no Japão. Cruzar o planetinha em vinte quatro horas, perfeito. Ano que vem, com certeza. Só depende de mim. Globalizaram o globo, mas ainda me pergunto se conseguiria dizer, agora, caso meu irmão estivesse aqui, que o amo. O amor só existe entre pares, da maneira que estou agora seria incapaz de olhá-lo nos olhos. Isso é temporário.

O papel está acabando, mas ainda tenho muito que lhe dizer. Vou tentar ser conciso. Faz tanto tempo que não falo com ninguém, por isso percebo uma certa verborragia. Estou meio bobo sabe? Costumava escrever muito, vários formulários, memorandos, relatórios, vez ou outra um cartão de aniversário, um lembrete de carinho na aba de um livro; deveres sociais cotidianos. Enfim, hoje em dia estes hábitos são incomuns por aqui. Não estou reclamando, aprendi com isso, será útil daqui para frente. Só caímos para aprender a levantar, não é? Os erros do passado agora são claros, aprendi com eles. Sou uma nova pessoa.

E vejam só, estou escrevendo demais novamente. Vamos direto ao ponto.

Nobre amigo, Papai Noel,

Desculpe-me pela ausência de contato por todos esses anos. Acredita que cheguei a duvidar de sua existência? Agora que as coisas andam endezembrando, tudo brilha e pisca; vários sonzinhos alegres acompanham os sorrisos estampados pelas ruas, lembrei-me de uma verdade esquecida; de você. Peço-lhe uma nova chance! Só isso, pelas minhas palavras sei que vai perceber que eu mudei, sou um novo homem; amadurecido. Farei acontecer desta vez, garanto, só preciso de uma mãozinha. Com sua ajuda voltarei com Judite, poderei rever minha filha, meus amigos, a vida. Não serei específico, o presente é simples, um novo começo. Sei que fui um bom garoto.

Já ia me esquecendo, embora eu tenha certeza que não se importará de receber minha carta escrita em papel de pão, não custa nada se desculpar, é o que faço. Desculpa. Quando tudo estiver melhor receberá em papel perfumado. 


Com carinho, Júlio Gueha.


Com um sorriso disforme Júlio amassou a folha de papel de pão em que escrevia e jogou-a no chão. Apoiado na parede do beco ele se levantou com dificuldades, sua perna estava cada vez pior. Suor escorreu de sua testa, mas ele estava em pé, curvado, mas sobre duas pernas. A madrugada estava presente, e na praça central tinha maior chance de conseguir um pratinho caridoso de sopa. O difícil, e doloroso, seria chegar lá. Estava em frente ao banco, seu ponto de esmola diurno, no entanto, ali o movimento noturno era inexistente. Já saía do beco quando uma voz lhe chamou a atenção.

- Sim, você foi um bom garoto senhor Júlio. 

Dentro da escuridão do beco havia um velho. Trajava um impecável terno vermelho. Sua presença emanava luz, destacava-se do ambiente, parecia mal colado àquela escuridão. Tinha barba e cabelos brancos. Sua barba, aparada rente ao rosto. Seus cabelos, curtos; penteado básico, estilo empresário. Tinha em mãos o papel de pão no qual Júnior escrevera a carta.

- Não ria, acredite na vida. Estou disposto a lhe conceder o seu pedido. Só depende de você, de fato. Venha comigo.

Atrás do velho uma porta se abriu, luzes piscavam dentro dela. Um ruído característico se propagava do interior do local; sons de uma fábrica. O velho, magro e austero, em toda simpatia apontava o caminho com a mão.

- Vamos, você tem de ir primeiro. Não hesite, liberdade é só mais uma palavra para nada mais a perder.

Júlio olhou profundamente para o rosto do velho, sentia-se atraído por ele. Sua presença era fraternal, emitia cores infantis, protetoras. O estranho homem tinha a voz rouca, muito semelhante a do falecido Martins, seu avô. Não havia como não confiar naquela figura. Se existia desconfiança ela desapareceu perante a visão do sorriso que o velho lhe dirigia.

Júlio entrou e logo após a porta se fechou. 







Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o download aqui. 

O diálogo do eu.




Tem como brincar de Adão e Eva sem ter nas costas o peso do mundo? Sim, estou arrependido, mas isso é papo para os meses adiante. Agora a noite chega ao fim.

Ilusões caminham para casa, voltam da festa. Caminho ao lado, altivo. Não sou do tipo sonhador, costumo me apoiar na dor do solo, não nas canções de horizontes ensolarados. Chamam-me insensível. A verdade é o inverso. Com sono, flerto com o chão de asfalto, é quando o vejo.

Nas raízes da árvore ele dorme confortável. Usa um cobertor como barraca. Não vejo o homem, mas o corpo está ali, respirando. Veja: a árvore, o homem e a manhã em trapos. - quadro pintado às pressas por um olhar sonolento.

Não me pergunte, mas sei que há mais vida ali, naquela cabeça sobre o travesseiro de raiz, do que no ônibus lotado, silencioso em sons humanos, que vem pela avenida. Buzina para mim, quase me atropela. Eu pedi para que meu corpo parasse, mas ele seguiu. Não tome o ruído por ruína, não ainda.  Ainda estou vivo, apesar. Uma frenagem inesperada, um susto e nada mais. Quase acordei as pessoas enlatadas ali dentro. Chega, tenho de ir. Embrulho minhas reflexões em passos certeiros e sigo.

Cabeça baixa por cabeça baixa ele dormia, eu não. Seria homem, ou mulher? Estranhamente fiz daquilo um homem, mas isso diz de mim, não do corpo sob o lençol. Continuar o caminho é o caminho, para lugar algum, mas com um sorriso amanhecendo. Sim, eu quis; quero, ajudá-lo, mas de leve, com um tanto de preguiça, confesso. Mas quem sou eu para tirá-lo do sonho? Só o que posso lhe dar é inveja. Com vergonha.

Atrasado revejo algumas cenas há muito ensaiadas: eu dançando, indo, sorrindo, mas hoje não mais. É segunda-feira, grita o calendário. Dia útil, tempo de ignorar corpos pelas ruas. Tenho de ir para casa me lavar. Bora-bora que o despertador está cumprindo seu trabalho, mas eu ainda estou carente de utilidade.

O final da semana, passada: destroço de castelo. Quiça construa outro no paraíso da semana seguinte, outra princesa com roupas largas, outra fantasia de príncipe remendada. Mas isso é outro conto e mesmo que haja muita felicidade que não me caiba, no baile resta bailar, por isso, desconecto a tristeza para construir a esperança de sexta próxima. Mesmo que minha gata borralheira calce sapatos de cacos de garrafas, novamente.

Chove chuva, chove sem parar. Canto e rio, dentro de minha discrição etílica, é claro. Ele terá frio? Eu tenho, e apresso o passo; isso se chama maturidade. Ocupar seu lugar com responsabilidade. Afinal, o avião está partindo, o ônibus já se fora... Aproveite a viagem, sorri a placa. Para onde vou? Para onde o corpo dormente vai? Esqueça o homem, deus!

Chega de diálogos. Agradeço ao corpo que dorme, deu um rabo para meus pensamentos correrem atrás. Ele está lá, eu vivo aqui, em minhas próprias avenidas. Não posso me culpar por lhe faltar caixão, por não haver quem lhe carregue em marcha. Feito buquê, ninguém jogará lágrimas sobre o solo no seu fim, mas e daí? As árvores continuarão a crescer e outros farão delas travesseiros, questão de conforto. A mim, instiga este futuro tão bem escrito no presente. Orgulho é saber ler, em minha ignorância, tocar essas vozes que não ouço.

Viro a rua, mas quem se vira sou eu. Caminhar, sempre à frente, é alucinógeno. Na sexta tem mais! Tenho de rir, estou atrasado, mesmo que vovô tenha morrido semana passada, e todos ainda falem dele, tenho que guardar o silêncio para o casamento de meu irmão.

Sem senso de tempo me perco na rua reta. Eis porta a porta de casa, ufa. Tenho chaves nos dedos, porém a fechadura dança. Minha religião não se lembra como agir. Olho para trás, somente a árvore é visível. Deito-me. A porta de metal não conforta minha cabeça, não a descansa. Penso naqueles para quem finjo sorrir, o que pensarão de mim ao ver-me aqui? Largado, em frente à própria a casa, trêbado, incapaz de abrir seu próprio lar. Parabéns! Não quero, mas durmo.

Relâmpagos, a chuva é pesada. Acordo em minha casa, deitado em minha cama. Alguém me ajudou, desconheço quem. O relógio marca três da tarde. Perdi o horário, talvez o emprego.  Pela janela de meu quarto vejo os galhos da árvore, distante, sacudidos pelo vento. Falta-me a lembrança de algo, tenho certeza. Meus olhos doem. Tento dormir.










Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Desgraçados, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 

A roda e a fortuna.

Salve traça, mais um conto!
Este mês cumpri a meta de quatro publicações. Não que exista uma ligação entre qualidade e quantidade, mas acredito que a prática é muito necessária, logo, estabelecer uma meta é uma das maneiras de me forçar a fazer algo. Infelizmente ter prazos e pressão é uma necessidade que já internalizei. Enfim...


Roda e fortuna

Para Luci  Rosa,  motivadora profissional.



Na agenda do pesadelo há vida na dor, a despeito da dor. Mesmo o prazer, a felicidade e todo o resto, quando apregoados na cruz cotidiana, fazem o amanhecer de um escuro noturno. Difícil? Não, nada mais que viver; e isto não é o mais simples de tudo?

O dever de deslizar pela existência, sem alarde,  sem excessos.

Ela escorrega, vento no rosto, desliza leve pelo escorregador. O vento a sopra, calmo feito avô. Seus pesinhos fincam na areia pisada, batida, dura. Levanta-se rápida, corre e sobe novamente. Do alto, não contempla, se lança com a certeza da carícia do vento. Sorrir é desnecessário. Feliz? Talvez. Inconsciente? Sim. Tais memórias: o chão de areia do parquinho, o odor úmido de manhã recém nascida, o ranger do velho escorregador, cada imagem do passado cobra seu dízimo; depressão.

Ela perdeu os movimentos aos 15, eu a olhava desde os 12. Semana passada fez 16; não houve festa. Sou amigo da família. Aquele vizinho de caráter inquestionável, que trabalha a valer, orgulhoso de suar mais que os outros. Bom desenhista que sou, desenhara minha imagem de cidadão exemplar. Hoje colho os frutos de meu traço simples, de minhas cores ternas, de minha forma cartunesca. Sou bom, confiável e inofensivo, mesmo que treine meu sorriso no espelho.

Já há um mês tenho cuidado da jovem Maria, não gosto de chamá-la Mariazinha. Embora a menina sofra de algumas deformidades, fruto do acidente, ainda conserva a essência da beleza que desfilava brincando no parquinho em frente de casa. Sabe como é, tenho muito tempo livre,  trabalho no turno noturno. Sem pensar duas vezes me ofereci para passar as tardes com a garota, para ajudar a família, ainda abalada. Ajudar ao próximo, não ser egoísta, estas coisas todas. Venho trabalhando em virtudes ultimamente. Eles ainda sofrem com o destino imposto à Maria, mas precisam trabalhar, quase todos precisamos. Deus sabe o que faz, assim lhes digo, e não tenho dificuldades em conter o riso. Acaso e aleatoriedade, um carro em alta velocidade e lá se vai a vida da menina. Resultado: a infante, agora decrépita, arrasta consigo a família em marcha de lesma que ora por sal.

Bicicleta nova, ainda protegida da queda pelas rodinhas. Papai correndo atrás, segura no selim, concede assim segurança e auto confiança, ingredientes necessários às primeiras pedaladas de qualquer garotinha. Ela consegue, todos conseguem, desde que preencham os requisitos. Ela não sorri, é desnecessário. O vento, ainda terno, lhe acaricia, um toque, agora passado, que custa não doer. Tudo se repete na roda da fortuna.

Há um mês nos divertimos pela tarde, ao menos aquele de nós que ainda consegue. Já refleti sobre o que fazemos, não sou insensível, mas veja bem, não há razão para arrependimentos, uma vez que  não consigo desenhar sorrisos em sóis alheios. Na primeira vez que a toquei ela chorou; calada. Eu não sinto falta de sua fala, lhe disse isso. A lágrima fez família. Mais de uma vez, quando sua mãe a deixava aqui em casa, ela chorou. É felicidade, eu dizia. Ela gosta muito de você, respondia a mãe apressada, e atrasada, novamente. Ríamos, sem alegria qualquer. Enfim sós, eu e Maria, matava vontades que há muito cresciam em mim. Em flor, o que é regado desabrocha. Eu a vejo verdadeiramente, e ela é mesmo linda. Traço geograficamente em seu corpo a imagem que a habita, aquém das imperfeições pelo destino talhadas.

Prazer na dor, a despeito da dor.  Ela não chora mais. Por dentro da carne ela vê, refletida em meus olhos, sua beleza ideal. Será? Sim, claro. Sua imagem, que com tanto esmero venho desenhando. Há cumplicidade entre nós. Nos amamos. Ela não precisa dizer. Ela não precisa se mover. Ela não precisa agir. Ela existe, e eu faço o suficiente por nós dois.

Ela quer voar, permanecer no percurso, cada vez mais alto, do balanço. Todo o corpo se impunha em dar velocidade à brincadeira. Seus cabelos dançam ao toque do vento, que frio, lhe seca o suor da testa. Ela sorri, é desnecessário. Memória, refúgio que não concede fuga. As tardes que ela não gostaria de lembrar, são as impossíveis de esquecer. A roda continuamente roda, seu movimento certeiro matou um futuro para adubar outro. Um carro, um atropelamento, uma tetraplégica, um destino dentro de um acaso.

Lá está ela, na cadeira de rodas em frente à sua casa, seu cabelo baila ao vento. Quanto de sua infância ela é capaz de lembrar? Será que ela se lembra dos tempos em que o vento era mais feliz? Tudo vai se apagar, mesmo as memórias? Creio. Às vezes penso que não deveríamos fazer o que fazemos. Mesmo eu sinto dores morais, mas, estranhamente, pareço senti-las em outro corpo, outro eu talvez. A certeza prática é que não sei cavalgar lágrimas alheias. Sigo, apenas, e é bom. A injustiça é divina.






Crédito: Imagem pertencente ao álbum, O Dobro de Cinco, de Lourenço Mutarelli.
Você pode conhecer o trabalho de Lourenço Mutarelli aqui.

Menina mentida_Parte III


Salve traça! 
Enfim, o fim. 
Decepcionem-se!



Menina mentida. 

III


“e não existe magia sem lágrimas. – concluiu a cigana.”

Presa no mármore da velhice, ansiava pelo toque de uma lágrima. A vida tardava em terminar, palavras ecoavam torturas longínquas: “Um dia você ainda vai ser alguém, deus te deu inteligência, um dom.” Sim, dom mamãe! Você acha que deus esquece alguém? Eu tenho dom para puta. Essa barriga aqui é a prova disso, não é pai? Ainda está para nascer alguém com vocação para lixeiro, um belo dom não? Catar os restos, é isso. O senhor não precisa me colocar para fora de casa, eu me coloco. E porta batia, grito calava.  E porta batia, balançando memórias sem fechar lembranças. E porta batia, misturando dores e horrores no longo vestido de Madalena; sua filha.

A velha contemplava a felicidade da filha, o vestido verde escuro cobria as marcas de nascença adquiridas com a vida. Maria das Graças, a neta, com certeza era adotada, afinal o útero de Madalena havia sido comprometido ainda na infância, pobre garotinha; uma tristeza.

Sozinha, era o momento! Com as parcas forças que tinha na mão a velha começou a movimentar sua cadeira de rodas para trás. Ainda era cedo, e a praia se encontrava praticamente vazia. Pouco a pouco a velha se aproximava da avenida. O suor escorria do rosto queimado pela idade. Em suas mãos faltavam algumas unhas, sangue escorria de feridas recentes, ainda cicatrizando. Falta pouco, ela pensa.

- Não! – Grita Madalena, distante, ao ver o perigo que a mãe corre.

As energias da velha são consumidas rapidamente, há dor, excruciante, mas ela ignora, não vai parar. É agora, o fim sonhado, enfim. A chance de bater a cabeça no asfalto é luz; é salvação. E que venha o sangue, pensa a velha ao jogar todo o peso do corpo para trás. Deseja lançar sangue no asfalto. E vai: um ruído, o horizonte se move veloz, a praia, nuvens, o sol...ela fecha os olhos.

E o movimento estaca, ela arregala os olhos a tempo de admirar o caminho reverso, a praia, o mar, Madalena correndo em sua direção, desajeitada. O vento no vestido marca o corpo deformado da filha amada.

- Muito obrigado – Diz Madalena, ofegante, arqueada sobre os joelhos.

- Essa foi por pouco dona, nossa, pouco mesmo, ela ia cair com tudo no chão. – Responde o jovem do alto de sua beleza esculpida. Suas pernas realizam uma marcha estranha, corre sem sair do lugar, não quer parar o exercício.

- Não sei o que aconteceu, a trava de segurança da cadeira deve ter falhado.

- Só pode.  – diz o rapaz com um sorriso indolente. – Bem preciso continuar, a senhora precisa de mais alguma coisa?  - e o alongamento se inicia: força os dois braços para trás. Seus músculos peitorais bem definidos saltam aos olhos de Madalena.

- Não...Não...Muito obrigado, se houver algo que eu possa fazer para agradecê-lo.

- Foi nada não dona. – Diz o rapaz, correndo antes de ouvir a resposta. Ele não olha para trás.
Após um longo suspiro Madalena empurra a mãe para longe da avenida. Maria das Graças chega, correndo.

- Mamãe, o que aconteceu com a vovó?

- Nada não gracinha. Vamos para casa, hoje vovó terá que fazer um tratamento especial durante a noite. – Diz Madalena, quase sussurrando ao ouvido da velha.

Vê-se o sorriso.

Com os olhos fechados a velha revê o sorriso nunca esquecido, imagem adolescente. Na época o crepúsculo não a impedira de ver a escuridão, mas agora percebia, não vira a luz; apenas mudara de cela. A esperança é precária, vem em ondas, promete soluções, sentidos, certezas. O que pode o resto, o lixo? Toda a vida no lixão não se explica, falta meio à promessa do início, que não se cumpre em fim; uma mentira. A velha respira fundo, banha seus pulmões em decepção.Por que aquele sorriso se repete? Talvez tudo se repita, imensamente, feito ondas que não são mar.


Um pescoço cede, lança dois olhos fechados em direção ao chão. A velha cansada. 


Vê-se dor.

Mais um dia começou. 













Crédito: Imagem pertencente ao livro, A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 

Menina mentida_Parte II


Menina mentida. 

II

                “Ouço o cair do tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair.”


O mar, a manhã, a brisa.
A praia vazia, a velha, a cadeira de rodas, o cheiro de urina, a nostalgia de futuro em broto seco.

Cabelos loiros encaracolados, olhos verdes, cheirosa, exalando juventude; uma bonequinha caminhando trôpega em direção à velha.  – Olha vovó, ganhei da mamãe. – Dizia a menina, enquanto colocava uma boneca no colo da idosa. A anciã, do alto de sua cadeira de rodas, lentamente moveu seu rosto, com os olhos fez um trajeto trabalhoso, da garota à boneca, da boneca à garota; dois objetos, porém um estava no pico da pilha de lixo.


O mover do braço da velha era surreal, seu corpo sofria, tal qual uma estátua, os infortúnios do movimento. Rangia dores e reumatismos que as cordas vocais não cantavam. A mão, pesada, tombou desajeitada sobre o rosto da boneca, o polegar exatamente sobre o olho esquerdo.

O presente da garota, maré inesperada, trouxe o passado em ondas, lançou conchas à praia. O peso de anos se esvaí no vagar marítimo. A velha imóvel, volta a peregrinar sobre pilhas de lixo, buscava a salvação: comida ou algo que se possa vender. De olhos fechados ela respira fundo o cheiro do lixão, se infla em juventude.

“Um dia você ainda vai ser alguém, deus te deu inteligência, um dom.”, que no caso era a capacidade de ler, de compreender um autógrafo em uma camiseta da seleção, de saber o valor de uma primeira edição de Fernando Pessoa, de reconhecer uma carta de Mário de Andrade para Manuel Bandeira, coisas que brilhavam ouro para olhos interessados, brilho suficiente para pagar a vida, por meses. Chamavam-na Maria Ledura, pois era a única capaz de encontrar estas preciosidades abandonadas. Ao contrário da maioria das pessoas que trabalhavam ali no lixão, ela era estudada, faculdade mesmo. A boataria não parava por aí: matou a família; foi estuprada pelo pai e fugiu com a filha; freira que vivia em penitência; louca varrida.

Maria Ledura tinha como tesouro maior o silêncio. Mesmo no dia que encontrou a criança em meio ao lixo, ainda viva, sua boca nada soltou além de breve suspiro, frio, logo seguido pela sombra fugaz de um sorriso; só.

Os velhos diários de observação, ela os revê: a letra perfeita, desenhada lentamente sobre o papel, o total controle sobre os movimentos dos dedos, da mão, do corpo. Dia após dia as reflexões a respeito do lixo, da sociedade, da criança que crescia em seu barraco. Todo o passado é agora, de novo.

3, 250 Kg. 32 centímetros.

Alimentação: vitaminas e leite.  Continua a crescer. Chora menos. Vez ou outra retiro a bandagem de sua boca. A ferida do local onde se encontrava o mamilo esquerdo esta completamente cicatrizada.

Devido a uma falha na imobilização do corpo, ao tentar retirar a pálpebra comprometi seu olho. Precipitadamente, na excitação do momento, retirei completamente o olho esquerdo. Não sabendo como proceder costurei o orifício. Agora, arrependida, temo perder a criança. Passarei a noite procurando no guia de primeiros socorros algo que ajude a garantir a sobrevivência da menina.

Nunca vi algo tão belo quanto este olho. Segurá-lo gera excitação, sexual, mas ainda além. É agradável ao paladar, ao tato, mesmo seu odor é apaixonante.

Hoje, pela manhã, notei que os movimentos da criança estão lentos, temo sua morte. Preciso mantê-la viva. O descarte não é aceitável.

- Mãe! Mãe! Está assustando a Maria das Graças. – Disse a mulher puxando da mão da velha a boneca da criança. Sem perceber, a anciã pressionava com o polegar o olho esquerdo da boneca.

Vagamente a velha transitou com seu olhar entre a criança e a mulher, entre o passado e o presente. Contemplou os rostos desapontados de seus medos: a velhice não lhe trouxera respostas, não todas. Existira, e mesmo ao espelho diria isso; tivesse ainda voz.

- Vovó precisa de ar. Maria das Graças vamos passear na praia com ela?

- Tudo bem mamãe, mas posso levar minha filhinha?

- Pode sim, só tome cuidado, não vá perdê-la, como fez ontem. Desta vez não compro outra.

- Vou tomar muuuuiiiiittttooooo cuidado mamãe.  – Disse a menina, já correndo pela praia, bem a frente de sua mãe e  de sua vó, ambas ainda na calçada.

Olhando com seu único olho nos olhos da anciã a mãe da menina sorriu. Sua boca enformava o sorriso tal qual cicatriz – Gostaria de molhar os pés nas ondas mamãe? Pena que a senhora não consiga caminhar, se seus tendões ainda fossem bons né? Mas tudo bem, podemos conversar, deixa que eu falo por nós duas, ainda tenho língua.

E assim elas percorriam a orla, vez ou outra enfeitando o tédio, Madalena falava com a velha, porém sem desviar a atenção da filha, Maria das Graças, correndo pela praia. Caminhava empurrando a cadeira de rodas da velha, sem deixar de ofertar um bom dia sorrido a todos com que cruzava. A manhã florescia em tons díspares, algo como, por falta de outra palavra, magia, pairava no ar.

Vê-se silêncio. 



















Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Desgraçados, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 

Menina mentida_Parte I


Salve traça!
Começo a publicar esta semana um conto em três partes. Na real, acho que deveria ser lido de uma sentada, como diria Poe, no entanto quem conseguiria? É longo.
Caso não entenda nada ao término, tenha ESPERANÇA, quem sabe na semana seguinte venha a compreensão.

PS: Comecei a publicar esta semana o material antigo do Mutarelli, continuarei a fazer isso com periodicidade semanal, ao menos este é o plano. Se não viu ainda, pode ver aqui.  




Menina mentida. 


I
“Ela vende velas acesas
Falta fé na palavra
na carne.”

Um dia você ainda vai ser alguém, deus te deu inteligência, um dom.

Encolher de ombros.

Dom, inteligência, talento, e após 16 calendários eu carregava na barriga o sepulcro de todas as esperanças que tinham por mim, eu não os salvaria, mas enfim, nunca realmente quis. Não diria estava feliz, seria exagero, mas ao menos os sonhos de príncipe encantado eram passado, enterrados, sem redoma de vidro, beleza eterna e tal: não erro duas vezes.

Posso não ser religiosa, mas tenho apego por catar aleatoriedades que vem a minha praia. Junto-as com prazer, nelas escuto destinos. Bobeira? Sim, mas não me poupo das risadas a mim destinadas, faz parte. E então chego ao ponto do ônibus, fim de tarde, trânsito epilético. Cansada, vagava os olhos à caça de conchinhas, foi quando a vi. Ela não jogou o primeiro saco de lixo em minha vida, esta culpa não lhe pertence, porém esta era a primeira vez que eu admirava o precário do existir; perplexa.


Velha, seca, cabelos loiros e castanhos, privilégio de tinturas baratas e mal feitas. Calça jeans suja, blusinha preta, decote esqueleto. Estava quase de costas para mim, do outro lado da rua. Anotava algo na mão. Seu rosto indiciava uma parede logo à frente. Curiosa, acompanhei. Um anúncio decorava a parede do terreno baldio: “trago a pessoa amada em uma semana.” Uma, duas, três vezes, fiz o trajeto que ligava o olhar da velha ao anúncio, não havia dúvida.

Intrigada, encarava deliberadamente a velha, que logo percebeu. Um par, para meu espanto, de dois belos olhos castanhos me fixou. Sua pele lembrava as secas anunciadas em cadeia nacional. Seus lábios estavam tingidos em vermelho sexo. Trazia no rosto um sorriso sem dentes, uma felicidade em vácuo. Estávamos ligadas, não conseguia desviar minha atenção daquele rosto vazio. Demorou para que eu entendesse que ela não ria, mas sim mostrava-me o futuro. Esta foi a primeira vez que vi a escuridão.

Naquela época julguei a velha em termos de crendice popular e esperanças tolas. Tomei-a por alguém que saltara de simpatia em simpatia, de trabalho em trabalho, construindo prisões à prova de relacionamentos. Se a mandinga resolve, se traz o objeto amado, então o problema é ter dinheiro para pagá-la, oras, nada de diferente da realidade não sobrenatural. Embora minhas conclusões fossem levianas eu sabia que havia algo além de minha compreensão ali, algo que conectava a velha a mim, algum tipo de ligação que espelho algum refletiria. Vez ou outra me pego naquele fim de tarde, colada àqueles olhos que não piscavam.


E então o mundo piscou e momentaneamente tudo escureceu. Caí de joelhos, minha barriga queria explodir, entre minhas pernas algo escorria. A velha desaparecera, mas aqueles olhos eclipsaram portas sem caminhos, portos sem mar. A ultima coisa que vi, já no chão, foi um carrinho improvisado, transbordando papelão, se distanciando. Era ela?

Nunca mais a vi e todas as vezes que pisco, sempre a vejo. Nunca mais a reencontrei e todas as noites nos encontramos. Em momentos como esse, sob a luz do luar, em que me banho nos perfumes dos restos da sociedade, em que lavo meus pés nos dejetos do consumo, tomo consciência que no inconsciente caminho percorrido, me tornei aquilo persegui.  




Lixo.

Lixo, tal qual a velha, retrato do precário.

Vê-se um sorriso.




















Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Eu te amo Lucimar, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 








Um despertar


Tenho beijado charutos com mais paixão, assim concluiu ao deixar o quarto. Tinha sede, afinal, mesmo insatisfeito, o exercício físico gerara necessidade de água. Ela em breve acordaria desesperada, atrasada para o trabalho. A moça faz parte desta população que se colhe em canaviais de segunda a sexta. Ele, com a cara lisa, riria, mas por dentro. O revolucionário travesso que desliga despertadores alheios. Rebeldia de bom garoto.

Na cozinha, a água transborda do copo: desatenção. Sedento, bebe em galopes.

Não satisfeito enche mais um copo, e a água derrama, pela segunda vez seguida. Perturbado, ele tenta apagar da consciência a situação. Porém, o silêncio discursa uma pitada de angústia. E assim, o prazer da água desperdiçada ganha tons de pesar. As paredes se aproximam, a escuridão do par de lâmpadas fluorescentes o encara: incompetente, não consegue nem colocar água no copo.

Não é sempre assim, em outras madrugadas chegara a sorrir ao derramar a água do copo. Estranhas primaveras em noite de invernos nas quais assumia que, deliberadamente queria ver a água fluir, criando trilhas imprevistas, inconvenientes ao mundo, molhando o que deveria permanecer seco. O copo vinha banhado em água, o toque dos dedos sentia o molhado, pingos marcavam o chão da cozinha. Uma pequena sensação de frescor, a água gotejava na cueca. Seus lábios aceitavam então a benção, degustando prazerosamente. E o riso, breve, pontuava o momento que antecedia a investida da razão. Morria então centenas de mortes, inconsciente, e aceitava a culpa travestida de incompetência.

Volta para o quarto, mas não dorme. O dia chega, amanhece, acordando uma vez mais a sede. Sente a presença intrusa em seu quarto: um corpo largado sobre sua cama, babando em seu cobertor, nu em seu espaço; quer de volta a solidão. Manhã sem fadas, com namorada.

Com calma, coloca água no copo, que desta vez não transborda. Um calmo, e eficiente, copo americano de água: desjejum de deuses.

Ele bebe e tudo o que sente é odor de baratas nos esgotos, de lixo se arrastando pelos rios, de suor do sexo constante entre pistão e cilindro. Não há mais sede, tampouco saciedade, falta algo. Desta vez acertara, não derramara. Porém não há troféu, sorrisos ou tapas nas costas. A água fora posta no copo. Ao maleável foi imposta uma forma: copo, e assim a água tornou-se invisível em sua utilidade.

E ele, que odeia alegorias pensa que talvez sua mente se divirta criando isso, mas à visão da água não há fantasias, tudo transparece.

Um copo cai, desabrocha em cacos. Uma lágrima empossa. Uma mulher acorda: assustada, atrasada. Uma luz é acesa. 

É hora do bom dia.







Crédito: Painel de Rafael Sica presente no extraordinário, Ordinário. 













Ninguém sonha nas tarde de domingo - Parte II


Salve traça!
Hoje posto a continuação de Ninguém sonha nas tarde de domingo, logo, ler a primeira parte seria interessante, mas não é necessário. Este conto é o outro lado do espelho da história de Ortiz Demóstenes Júnior. 
Fique à vontade para devorar estes bits velhos e sujos.



Ninguém sonha nas tarde de domingo - Parte II


O gênio: tá aí uma invenção que o João Carvalho Folha sempre quis comprar. Sua escrita, assim como sua vida, era metódica. Horas e mais horas repetindo ideias em frente ao computador. Página após página e nenhum parágrafo de inspiração. Publicara mais de vinte livros, porém seu nome não enfeitava a capa de nenhuma de suas criações. Ele é um escritor fantasma, no bom português, escreve livros para outros levarem o crédito. Seu trabalho é diário, às vezes interrompido por algumas intempéries da vida familiar, nada além do comum.
-  Papai! Papai! Olha o desenho que eu fiz.
- Maria Cláudia, o que está fazendo? Está dormindo querida? Não pagamos você para ficar plantada assistindo novela. Levanta sua bunda do sofá e dá um jeito na Estéfanie, ela está atrapalhando o Carvalho, estou escutando daqui. Vamos mulher! – A voz estridente da esposa do Carvalho Folha era o chicote da casa.
A empregada, desengonçada pelo sono, entra apressada no escritório, a tempo de ver o patrão prometendo a filha uma visita ao McDonalds mais tarde, assim que terminar as trinta páginas da meta diária. Rapidamente a serviçal se abaixa para tomar o projetinho de patroa nos braços. Carvalho Folha, sem disfarçar, encara a beleza mal contida que salta do decote da mulher. Seios negros e mal envelhecidos, flácidos, porém atraentes devido a seu caráter não rotineiro. Maria Cláudia ignora os olhares do patrão, como sempre fizera, e parte com Estéfanie no colo.  A empregada nunca lhe dirigira um sorriso ou olhar de reprimenda, simplesmente ignorava o homem que habitava aqueles cento e vinte quilos de história de vida.
Sozinho, ele volta a atenção ao computador, às letras, ao trabalho. - Oras Carvalho, esqueça-a, você pode pagar coisa melhor. - No entanto o desenho anormalmente incomum dos seios de Maria Cláudia não saía de sua cabeça. Só havia uma solução, pensou. Feito adolescente, a visita ao banheiro se fez necessária. Nunca encontrara uma mulher como a empregada, e há tempos procurava. Nos prostíbulos que frequentava só havia modelos, mulheres de plástico. Todas tinham futuro: estudantes promissoras com planos e carreiras, de administradoras a engenheiras de alimentos, sem esquecer das psicólogas e fisioterapeutas,   não faziam, o estilo empregada. Buscara também nas ruas, porém a noite ao relento não faz bem à velha profissão, e, seguindo a escala evolutiva das putas, eram todas muito feias, arruinadas pelas drogas e maus tratos, mesmo se comparadas com a quarentona estragada que era Maria Claudia,  eram horrendas. Enfim, sua pretinha era única, mas não queria dar para ele, eis o problema. De qualquer maneira, o corpo sempre vence e para as fantasias de João Carvalho Folha, 42, somente restava a boa e velha bronha.
Imagem criada pela imaginação do Carvalhinho.
Após cinco minutos retorna do banheiro. Uma vez aliviados os espíritos do corpo, hora do trabalho. O monitor estava forrado de palavras. As letras se juntavam feito formigas, eficazes em realizar, inconscientes, o programa da natureza. Neste trabalho específico Carvalho Folha se fazia passar por um padre, um grande nome da geração de sacerdotes pop-star. O livro tratava da troca de correspondências entre o vigário e um figurão, secretário da educação do estado. Para dar maior veracidade aos personagens, escrevera primeiro todas as cartas do padre. Passara então um mês em NY, como recompensa, e agora se dedicava as cartas do educador. Constantemente tinha de fazer breves alterações nas cartas do padre, de maneira a propiciar um diálogo mais coerente, porém nada de muito complexo, qualquer porcaria edificante tratando de educação e religião servia. O público alvo destas obras reconhecidamente não manifestava um crivo crítico apurado, ainda mais quando se tratava das palavras de algum ídolo. 
Abuse do verbo “é”, diga as pessoas  A verdade. Isso é assim. Isso é bom... Você sabe como fazer. Diga-lhes o que fazer quando alguém morre ou quando o filho entra no mundo das drogas, estas baboseiras. Esperanças e tal... Dê respostas, e por mais estúpidas que elas possam parecer, as pessoas tomaram como sabedoria.  – Tais foram todas as indicações que seu editor lhe dera a respeito deste trabalho; mais que o suficiente. Carvalho Folha tinha muita experiência, e neste ramo, isso é muito precioso.
No entanto, para quem tem uma meta diária de trinta páginas, normalmente escritas em cinco horas, as parvas duas páginas feitas até então eram um fracasso. Atividades manuais, pensou, libertar a mente da necessidade. Hora de lavar o carro.
Leve, Carvalho Folha acariciava as curvas do carro com um pano, limpando. Foi quando o filho do Ortiz surgiu. Caminhava cabisbaixo, sujo, provavelmente mais uma noite de boemia. Sem inveja, aparente, o cumprimentou. Simpático como sempre, o jovem retribuiu o aceno e o sorriso.
Sempre mal vestido, sempre bêbado, sempre a pé. Que vida! Não tem filhos e nem é casado. A herança do pai é seu ticket de VIP na vida. Sua passagem está paga e ele só vai aproveitar a vista. Se eu fosse assim, tivesse essa oportunidade, e talvez, enfim pudesse me dedicar a ser um escritor de verdade. Daqueles que tem seu próprio nome a abraçar suas palavras, em uma bela e ornamentada capa. Uma daquelas pessoas que dizem algo, e não simplesmente vomitam filosofias furadas na boca de subnutridos. Quisera escrever algo além de vômito em conserva. Já sei, vou escrever sobre o Ortizinho, farei dele meu personagem. Isso! Será um escritor que batalha frente à vida esvaziada de sentido pela sociedade capitalista. Contarei seus amores, suas noites...Ele, antena da raça! Sua martirização frente a arte como comércio...Assim pensava Carvalho Folha, perdendo-se em ideias e possibilidades.
E João Carvalho Folha sorria. Seu sorriso se transformou em gargalhadas enquanto limpava o para-brisa à prova de balas. Seu reflexo revelava gordura balançando por toda parte, riu mais. 
Sim, escreva sobre um escritor e faça arte! Descreva o processo de criação, o sacrifício imposto às pessoas com um pouco mais de sensibilidade. Escreva sobre um escritor, nunca o fizeram. Fale das incapacidades da linguagem, do silêncio frente ao inominável. Será respeitado, medalhão da cultura nacional. Suas obras completas em acabamento de luxo, enfeitando estantes de um futuro distante. Carvalho Folha, celebrado por meia dúzia de intelectuais, premiado com a imortalidade, porém sem dinheiro para uma boquete com a puta mais suja da cidade. Isso Carvalhinho, você pode escrever, mas entenda que aqueles que escreviam em pé morreram de deitados, na sarjeta.
O carro estava limpo, a mente tivera sua pitada de imaginação liberta. Com um último sorriso no rosto João Carvalho Folha retornou a sua casa, sabia que agora conseguiria escrever as vinte oito páginas que faltavam para alcançar a meta diária. A tarde de domingo se mostrava promissora, porém algo fazia de sua cabeça nuvens. Com um suspiro concluiu, sem determinação: chega de sonhar.






Crédito da imagem: painel de Robert Crumb em Meus problemas com as mulheres


Ninguém sonha nas tardes de domingo - Parte I


Salve traça. 
Este conto escrevi em tardes de domingo, tempos passados ainda frescos na garganta. Semana que vem posto a segunda parte e, acreditem, os preconceitos e os clichês ficam ainda piores. 


Ninguém sonha nas tardes de domingo - Parte I 


Entretanto já é tarde de domingo quando ele volta para casa. Casa? Não mencione nas rodas boêmias. Cama só se for de amante. No caso da humilde residência se localizar no bairro nobre da cidade, é melhor guardar silêncio absoluto. O poeta maldito retorna à acolhida higiênica da riqueza, a visão do casarão bege de três andares o perturba, mas oras, tem sono. Sem dinheiro e sem moral escreve sua vida em terceira pessoa para rir das rugas que o papel omite.
O sol vai longe no céu, e os cigarros acabaram. É poeta, mas não fuma pluma. Como vai conseguir dormir? Se andasse com cartão de crédito poderia adquirir uma caixa de charutos; cubanos. Fora de questão! Que espécie de pária da sociedade anda com Credicard Platinum?
          Com asco flutua pela rua de sua casa. Bairro nobre, ostensivo. Os casarões refeitos pelos novos ricos são a corporificação do céu na terra, amém. O povinho que vive nessas casas, em sua maioria, teve sua ascensão nos últimos anos. Apreciadores de sertanejo universitário e pagode baixo calão, os novos ricos não cabem na fantasia mofada de elite provinciana. Ortiz Demóstenes Júnior, atormentado com o ambiente, cospe o amanhecer estragado pelas calçadas limpas da classe dominante. 
         Demóstenes, como prefere ser chamado, caminha rápido e cabisbaixo. Tem vergonha pelo que é, rico, e pelo que finge ser, poeta maldito. Baila desajeitado pela vida, suas fantasias não lhe cabem.
           - Bom dia. -  Diz cumprimentando o vizinho da frente de sua casa.
           - Bom dia?  - Pensa. -  Com um sorriso no rosto? Como pôde?
Envergonha-se pelo bom dia lançado à massa de carne gorda que lava o carro em frente a sua casa. O vizinho é um homem que sabe o que faz. Agora por exemplo, esfrega o carro como quem diz: não preciso fazer isso, mas faço. Observe admirado como faço melhor que qualquer lavador de carros, profissional.
            Lavar o carro; ritual religioso, geralmente executado aos finais de semana, por aqueles que têm nos automóveis e nos títulos de futebol conquistados pelo time do coração, as glórias da existência esporrada pela cegueira de um orgasmo lua de mel.  - Se Demóstenes dissesse o que pensou a política de boa vizinhança iria para a merda, logo, simplesmente compartilhou um sorriso com o vizinho. Este sorriso dói, reverbera no que o poeta queria ser, mas não é.
             Ortiz Demóstenes Júnior, filho de Ortiz Demóstenes Neto, nunca  foi capaz de decidir o que sentia com relação ao pai: amor ou ódio? O velho se afogou em álcool após ser abandonado pela mulher. Deixou como herança o enorme casarão e uma gorda conta no banco, ambos frutos de uma vida falando as palavras certas; lidando com sonhos e promessas: publicitário.
           Como pode alguém com o nome de Júnior ser homem? Fosse homem e ignoraria a massa compacta de gordura que acaricia as curvas do carro recém lançado, recém comprado. Fosse o que diz ser e não teria casarão com ar condicionado e centenas de reais no banco. Fosse o que finge ser, e não seria homem perante o par de olhos poluídos que o fitava.
Ortiz Demóstenes Júnior, pêndulo alucinado entre a simulação e a dissimulação, trancou o portão e olhou novamente para o vizinho. Para aqueles olhos de copo cheio, típico de pessoas que nunca bebem, não porque não desejam, mas, sabe como é, no copo sempre há alguma sujeira para atacar a higiene e o bom senso.
             No caminho para a cama a figura do vizinho bolota toma a mente de Júnior de assalto. Amontoado escroto de carne, preciso transcender sua surdez! Porco gordo, preciso vê-lo na nudez de seus gritos represados. Tenho que mergulhar, sem nojo, em seu sorriso para ver o abismo que se esconde atrás deste outdoor resplandecente em autoadmiração.
Uma imagem vinha à mente do jovem Ortiz: Uma estátua de certezas entalhadas e colocadas sob o pedestal da loucura. Abaixo do monumento uma placa: felicidade privada...A imaginação fluía. Por que vejo mármore naquilo que não passa de carne contaminada de limpeza cotidiana?
            Portão trancado, alarme ativo, luz apagada, ar condicionado ligado. Deita-se.
            Levanta-se.
Não! Poetas malditos não dormem ao meio dia em frescor de fortaleza pessoal, de papai. Desliga o ar-condicionado e aproveita para colocar a segunda de Brahms no aparelho de som. Lança-se ao abraço macio da seda, afunda na cama. Lutando contra o sono, sua vaidade o balança uma última vez. Toma papel e caneta em mãos, anota:
            Ideia conto – Retratar a vida de um gordo capitalista.
Escuta as correntes que movem aquele mar de gordura!
Auto afirmação é a palavra. Ele é mais do que parece? Veja! Você é capaz, pois você enxerga o que para os olhos alienados é invisível. Baseie este personagem no...
No vizinho da frente.
As favas! Não consigo lembrar o nome do bolota.

Imagem de um maldito qualquer em seu habitat. 






Crédito da imagem: Painel pertencente ao álbum O Dobro de Cinco, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 



Último suspiro do ego


Salve traça.
            Fim de férias! E para a devida apreciação de vosso paladar, um breve texto amarelado, banhado em poeira. Apetitoso?


Último suspiro do ego


Não vou me desculpar.

O cenário é belo, infantil e saudoso. Domingo de sol mergulhado em amanhecer povoado por esperanças. Olhos fechados; tempos infantis saltam à mente, a descrição não é difícil, mas fazê-la dói. A imaginação, espaçosa, machuca-me com movimentos desastrados. Um latido, um pequeno rabo balançando, uma corrida inconseqüente no quintal. Felicidade se conjuga no passado: eu era feliz. O doutor, ou melhor, médico; veterinário, disse que ele estava velho. Que por enquanto não sentia dores, mas as sentiria em breve, em demasia. Sem me olhar cuspia palavras facilmente. - Não sentirá dor alguma, procedimento simples, limpo, duas injeções: uma para dormir, uma para morrer. Sim, morrer dormindo...Com que sonhariam os cachorros?

Feito despertador, o cheiro do café quente me acordava, era o abraço que papai nunca me dera; bom dia sincero. Por dezessete anos acordei com o café e o pão quente me aguardando na mesa da cozinha. Nosso pai nunca disse que me amava, não com palavras. Não consigo dizer seu nome, doeria demais, com esforço solto: cachorro, é o máximo. Enfim, não passava de um animal, certo? Eu lhe dedicava amor, que em termos práticos se resumia a prover água e ração. Carinho? Vez ou outra, quando a insistência balançante do rabo vencia meu tédio, ganhava um afago. Eu o amava.

Foi tudo lento. Sinal após sinal, ignorados não por não os ter percebido, apenas fingia que inexistiam. Todas manhãs após nosso pai utilizar o banheiro, ele borrifava grande quantidade de purificador de ar no ambiente. Sua urina, devido a forte medicação e ao estado avançado da doença, fedia.  Eu, resguardado no silêncio que cultivávamos com carinho, não me incomodava com aquele cheiro de morte  penetrando no amanhecer familiar.

No frio vinha se enroscar comigo. Ficava na beira da cama, olhando-me, enquanto não autorizasse a subida ficava ali, tremendo. Cachorro pequeno, magro, mesmo embaixo da coberta, se enroscava em meu corpo em busca de calor. Hoje o frio é todo meu.

Cento e cinqüenta reais? É meio caro, mas vale a pena, disse o doutor. Sim, não queria vê-lo sofrer, e analisando retrospectivamente, o preço que paguei pela vida de nosso pai fora bem maior.

Definhar, o urologista não usou esta palavra, era desnecessário. Hemodiálise era o tratamento indicado. Ganha-se tempo, mas e quanto à vida? As dores seriam companheiras matinais, disse o doutor. Quanto a isso eu sabia, o silêncio seria a única medicação receitada. Definhar, a palavra estava no ar: a vida se esvaindo, pingo a pingo, banhando lentamente o solo, preparando o caminho para a comunhão anunciada, à esquina. Nosso pai, diminuto atrás da pilha de setenta e nove calendários que era sua vida, parecia uma criança, fingia não compreender o diagnóstico; quisera eu dissimular tão bem. Não que ele não tivesse amado, rido, e todo o resto chamado vida. Tivera filhos, uma casa, um carro, uma mulher, enfim o pacote completo. Fora feliz? Teria se questionado no silêncio nupcial? Teria algum dia tido a sensação de se encontrar perdido, abandonado em uma fila rumo ao abismo? O que teria pensando ao receber a notícia de que você nascera minha irmã? Alguns domingos são ensolarados, noutros há tempestade, os piores repetem o cinza diário.

Você me questionou certa vez, olhando como se contemplasse um animal dentro de uma jaula, você entende o que fez? Eu não, mas e você, entende o que tem feito?

Definhar? Não suporto o cantar ansioso dos vermes. Enterrei meu cachorro. O veterinário, experiente aos vinte e bem poucos anos, estava certo. Procedimento limpo e silencioso. O cachorro parecia dormir, porém nunca acordaria. Com nosso pai foi mais complicado, embora também tenha morrido dormindo. Dei ao velho um fim digno. Gosto de fantasiar que ele sabia, afinal nossos olhos sempre conversaram aquém ao silêncio de nossas personalidades. Antes de tomar a xícara derradeira de café, envenenada, olhou-me longamente, sereno, superficialmente saudável, olhos despidos dos véus da esperança. Nunca lhe levara café antes. Ele, discreto, não indagou a estranheza do gesto. Agradeceu-me e desejou boa noite, era a despedida. Não respondi. Que tenha sonhado a vida eterna.

O olhar de meu cachorro carregava tristeza, ao contrário do de nosso pai. Talvez não compreendesse algo que para nós, apoiados na racionalidade, é evidente. Antes morrer sem dor, em um sonho, a definhar pelos cantos. Não vou dizer seu nome, ainda sinto sua ausência.

Você entende? Eu não.

Definhar.


Não há muito a explicar. Sem palavras peregrinas, coloquei tudo no papel.O resto é com você. Ligue os parágrafos, misture com sua memória sobre nosso pai e carimbe um sentido a sua escolha. Não estarei aqui para contradizê-la. Sim, hoje é meu fim, mas não se engane, todos sofremos de uma doença fatal; cedo ou tarde perceberá. Hoje tomo a medicação derradeira para o medo de definhar. Sou incapaz de explicar além disso. Sei que me odeia; matei seu pai. Com a sociedade paguei minha dívida, envelheci na cadeia, mas você irmã, não vê perdão para um homem como eu. É evidente. Não a culpo, mas sei que me culpa.

Enfim, para que não se engane com relação a meu ato, isto nada tem a ver com você. Minhas escolhas foram feitas do alto de meu egoísmo e medo, infantis, sim, conforme suas palavras no velório de nosso pai. Não espero com esta carta expiar nada, ou mesmo plantar lágrimas e remorso, não há pesar em meu fim. Isto é um pedido – enterre-me ao lado de nosso pai.

Adeus.

"Não olho para o céu com esperança, só espero sonhar."  


                                                                       Com carinho, de seu irmão, Fábio Dias.









Créditos das imagens: Quadros de Lourenço Mutarelli presentes em "Quando meu pai se encontrou com o et fazia um dia quente."