Camada externa do ser; pele.


Epiderme




I
- É questão de sentido, a angústia está sempre presente, a menos que estejamos ausentes, eis onde entra a fuga. Todos, à sua maneira, fogem. Não sou diferente, utilizo o álcool.
            - Sim, como quando nos cobrimos em noites de verão, temendo monstros imaginários?
            - É! Mas o desconforto não é o mesmo...
            - Não consigo acreditar em você, pode até ser verossímil, sabe? Toda esta mania de ter que criar uma explicação pseudo profunda para tudo em sua vida, de agir sempre de acordo com um sistema de valores pré-estabelecidos, mas comigo não cola, te conheço a tempo demais.Não há idealismo em bebedeira; fato!

            II

-Tenho vivido números ao invés de dias. Anseio sentir, mas em minhas costas pesam séculos. Isto: tempo, vida. – Você me disse, como se por óculos tivesse a cegueira. E assim, a tolice ficou entre nós, unindo o oposto outrora cindido.

            III

9h45 em seu relógio, o que indicava que no resto desta região seria algo próximo às 10h, fato que absolutamente não significava nada. No norte do país, duas horas a mais e na Rússia? E na Austrália? Existiriam mesmo estes lugares?  Em sua cabeça eram só conceitos, vazios, colagem de imagens em palavras.
Hoje, nem ao menos é hoje no mundo inteiro, em alguns lugares ainda é ontem, em outros amanhã, mas todos, à exceção de Alberto, assumem este exato instante da existência como o Hoje. E então?
Alberto altera o horário do relógio, retrocede quinze minutos, mudando superficialmente seu tempo.
Quinze minutos atrasados, na maior parte do tempo, garantem que você não será o primeiro a chegar. Você atrasa seu relógio, mas é você que se torna um atrasado.

(
Aqui cabe uma explicação um pouco mais verborrágica:
Existem pessoas e coisas, mas as coisas não se atrasam, somente pessoas.
Existem pessoas e coisas, e ambas quebram, só que você não deve dizer isso! Quando uma pessoa quebrar diga: vai passar, vai melhorar, ou, ela está em um lugar melhor. Nunca a trate como uma coisa, embora, essencialmente, as pessoas sejam não passem de um tipo coisa.
Pessoa é algo que não existe, todos tem nomes, e, na maior parte do tempo, preferem ser chamados pelo nome, isto tem algo a ver com a identidade, e tudo a ver com a angústia.
Um nome basicamente garante uma certa dose de conforto, oras, você não é mais um anônimo qualquer. Sua vida, num horizonte milenar, em meio a uma imensidão de pessoas ganha um grãozinho de identidade; um nome.
Nome - vigilância 24 horas que protege da evidente insignificância de viver boiando em um mar de pessoas.
Existem muitas maneiras de escapar da angústia.
Existem pessoas e coisas, chame as pessoas por seus nomes e nunca, nunca, nunca diga que são coisas, pois assim, em um efeito reflexivo, inauguraria sua própria casa da angústia.
)

IV
Lá fora escuto bater de asas, um pardal, um pombo, um morcego, não sei se é dia ou noite. Fossem sinceras asas de fada à minha janela, ainda não me moveria. Hoje, sol ou lua, tudo é externo, nada me moverá.

V
Uma criança chora para ter o que quer. Chora mais e desperta a atenção de todos. Chora mais e irrita os pais. Chora mais e consegue o que quer. Plástico, em forma de uma pistola; dentro um suco qualquer. A criança toma a doce mistura de corantes e água com gás. Raso, sem sorrir, joga fora o “brinquedo” meio vazio.O pequeno e jovem ser humano não nota o outro exemplar de sua espécie adiante. Um rapaz no canto, à sombra, talvez depressivo, pronto a estourar os miolos, mas isso, não tem nada a ver com essa história, é profundo demais.








Créditos da imagem: Absoluten Calfeutrail de Moebius.



Números 3

Salve traça!
É com prazer que posto Números Ed.3! Pois é, tudo que é ruim perdura mais do que deveria, já dizia o senso comum.
Nesta edição conto a história dos "13 Macacos", façam o Download.



 Download: Número_ed.3


Créditos desta edição:
Quadros de A piada Mortal, roteiro de Alan Moore e arte de Brian Bolland.
Trechos de Os Sertões, de Euclides da Cunha

Por sinal, apreciem aqui um trecho, deveras belo, na íntegra.


Higrômetros singulares

            Não a observamos através dos rigorismos dos processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colunas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado, uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho A coronha da mannlincher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixará-o ali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia o turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absolto mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Vanderlei; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos . Ficou quase em pé, com as patas dianteiras frimes num ressalto da pedra...E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as crinas ondulantes...
Quando aquelas lufadas, caindo às ubitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto: cada partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.
Fora disto – nas longas calmarias, fenômenos ópticos bizzarros.
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se para os descampos, ao longe, não se distinguia o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil , e não distinguia a base das montanhas, com que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse e refrangesse e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes.


 Excerto de Os Sertões, de Euclides da Cunha.



Funeral em mármore




 "Declaro:
Aos homens de bom gosto caberá o lamento silencioso neste breve minuto, assim como o capuccino servido em certezas rotineiramente silenciadas. Confrades, é conveniente que finjam se importar, não pelo homem que se foi, mas para que se mantenham treinadas as lágrimas em seu rolar. A morte, fato que aqui se impõe, de nós nunca cobrou a dádiva do silêncio, no entanto, o instante clama por dramaticidade. Logo, passo agora a ler versos parcos, abandonados em vida pelo nosso cadáver."



Estátua

Ele, Vêersuos e Sientimmentuos inteiros,
Eu, trôpego sorrio de soslaio, matreiro.
Ele, guardião de Iddiéias e Ideails,
Eu, contemporâneo de anos, sem mais.
Ele, abraçado nacionalmente por lágrimas,
lápide rebuscada em limo, em mármore.
Eu, salva um café,
a ausência de minha existência.

E fique dito:
Ele, há perdurar,
Eu, nem mesmo o chorar. 










Crédito das imagens: Quadros de V de Vingança, roteiro de Alan Moore e arte de David Lloyd