Números 6 - O chamado

 Salve, traças,

 Estou começando a publicação do fanzine Números em sua edição 6. O conto ficou um pouco longo, então, antes de publicar o arquivo completo, publicarei a história em três posts por aqui. 
Ainda não tenho o título dessa história, AJUDEM-ME!. 

O chamado

I

Futuro é um artigo de luxo. Ter um “a longo prazo” é um puta privilégio de que ela não desfruta. Com fome, desejaria comer. Cansada, pensaria em despencar na cama. Com tesão e solitária, o plano é sair para meter. Hoje. Agora.

Certas noites precisam do amanhecer, enquanto outras anseiam pela madrugada. Ela só queria se sentir querida, desejada, ser o plano de alguém...Que um ser, em meio àquele deserto, a tivesse como norte. Que a esperança dessa pessoa fosse vê-la novamente. Não confunda a necessidade de desejo alheio com carência. O objetivo dela era tão somente se alimentar da esperança contida na semente do desejo.

Acariciava a tela do celular, dançando com os dedos em busca daquelas pessoas que eram belas, mas no limite da feiura. Ele ou ela tinha de ter um ar de profundidade e inteligência, no entanto não poderia ser distante o suficiente da sociedade para não se importar com a aparência. Sim, é óbvio que o visual é importante. Em um cardápio, escolhemos o alimento pela imagem que mais agrada. Para abrir o apetite, escutava jazz e tomava uísque.

Uma vez localizado o alvo e estabelecida a certeza do interesse mútuo, declarava-se solitária e querendo conhecer alguém. Veja bem, para se saciar, precisava criar o desejo verdadeiro, aquele que não acabava com um jato de porra. Somente assim, aquele brilho esperançoso surgiria no olhar no momento da despedida. Dizer “estou afim de meter” certamente atraíria companhia, mas não era isso que buscava.

Encontrou. Hoje seria um “ele”. Cabelo black power, óculos amplos, descrição engraçadinha e sagaz no perfil. Era um pouco mais novo que o ideal, mas serviria. O papo foi direto. Não gosto de conversar on-line, prefiro contato humano, por que não vamos a um bar? Ela não disse nada disso, ele o fez. Conhecia as linhas de força que comandavam a mente masculina média. À mulher, rezavam os códigos, cabia o papel de apenas insinuar, deveria deixar para o macho as proposições, as escolhas, os convites. Não se importava, era mais prazeroso fazê-lo colocar em palavras aquilo que ela previamente desejava. Marcaram o horário e o local. Era hora de banhar-se.

 


II

A água escorria pelo alto da montanha. Um homem com a loucura do deserto portava um cajado que brandia aos céus com todo o ódio que só o amor fanático pode proporcionar. Relâmpagos cortavam a pele formando irreconhecíveis rostos. Os cabelos longos ditavam os caminhos para a torrente. Seu rosto convidava ao temor. Sua boca vociferava colericamente a verdade; cega. Abaixo da montanha, várias pessoas representadas de costas observavam consternadas a postura vilanesca do velho. O sabão tampava a mulher ajoelhada que se recusava a pagar a devida atenção ao profeta. O calor gerado pela água e pela fricção do sabão trazia uma tonalidade vermelho-sangue à cena. A tinta que rasgara a pele cobria a totalidade das costas. O movimento do corpo, recriava vida na face do senil legislador sacro: o sermão renasce no calor do sangue que se prepara para a vida noturna da capital.

Algumas leis são eternas, – na escuridão do banho quente, ele pensava - há verdades além daquilo que nossa visão entrega. A revelação não pode se dar pelos sentidos calcificados pela podridão do cotidiano. A bucha raspava a pele em um movimento obsessivo; amoroso. O banheiro é  o melhor lugar da casa. Banhar-se em silêncio no ambiente sem luz, limpar o corpo e a mente, clarear o pensamento.

            Repetia esse processo todas as noites antes de começar a trabalhar. Apesar de tudo, ainda precisava de dinheiro para alimentação. Levava uma vida simples e regrada, pois desejava interagir minimamente com o mundo. Sob a luz bruxuleante das velas secava seu corpo. Observava sua figura no espelho de dois metros de altura por um de largura que mantinha em seu quarto. Gostava de admirar seus músculos, se quisesse poderia colocá-los em ação e espremer qualquer um daqueles com quem tinha de conviver. A imensa tatuagem de Moisés no monte Sinai que cobre completamente suas costas o relembra de seu caminho. Traz com orgulho, na ruína do corpo, a marca da revelação.

Veste-se sobriamente, toma um copo de vinho acompanhado por pão e segue para o trabalho. Mais uma noite arrastando perdidos pela carne do desejo que é a madrugada na capital.


III

            Segundo meu psicólogo, eu não deveria brigar com as verdades que não me agradam, pois bem, sou verborrágico e isso não é um defeito, de modo algum! A verborragia é uma das minhas características preferidas. Vejo-a como um índice de superioridade intelectual, afinal, por meio dela desenvolvi a capacidade de articular por meio da linguagem verbal significados que normalmente seriam inatingíveis para o pensamento confortável ao chão do asfalto. Eu poderia atravessar o deserto analisando meu discurso. Dito isso, confesso que há verdade no que dizia minha ex-empregada: “Cê só sabe plantar enganos na nossa cabeça”. Sim, ela dizia rindo. Sim, ainda assim, é uma pérola de sabedoria. Sim, ela falava isso após metermos novamente pela última vez. Sim, ela errou ao interpretar minha necessidade de expressão clara, e talvez excessiva, como um sinal de afeto que atravessasse nossas diferenças e nos unisse em algo mais do que um par de pessoas querendo gozar. Acredito que atualmente ela perceba o erro em se declarar para um homem / pênis cujos desejos se resumiam a uma foda garantida durante o prólogo das noites de sexta.

Do que falamos? Oras, este é o exercício de sinceridade requisitado pelo psicólogo. Embate com a verdade. Trabalho terapêutico de confrontação com o “eu”. Em outras palavras, uma piada bem elaborada por partes de mim que nem mesmo conheço. Labirintos de pistas falsas para um ser único que existe apenas nas planilhas de imposto renda de técnicos contábeis. E lá quero eu saber quem EU sou? Respira. Respira. Volte! Devo controlar o fervor por criar narrativas / justificativas.

Esta é uma tentativa de traçar algoritmos de possibilidades, mapear minhas linha de ação com  aquele sorriso envolto em desejoso batom, flagrante esperança, fragrante tesão. Como é linda! Não há problema nenhum em beleza e ingenuidade andarem juntas, ainda a valorizo, apesar dela ter tentando me manipular feito uma criança de 22 anos. O fato de minha idade ser 22 anos enfraquece o argumento? Crio piadas para o meu próprio riso contido. Ela tentou usar-me e pensou que eu não perceberia. Um gesto lindo que despertou ainda mais o desejo.

Como devo comportar-me com ela? Sigo com o papel a mim atribuído? Explicito o quanto juvenil e óbvia ela fora? Ela compreenderia? Entenderia minha demonstração de intelecto superior a média como uma tentativa de agradá-la ou como um ataque?

In vino veritas. Não deveria fazer isso, porém tudo aconteceu rápido demais e não terei muito tempo para me preparar. Talvez seja positivo. Sinto que esta será uma noite de revelações! 












Crédito das imagens
1 - Não encontrei o autor, aceito ajuda. 
2 - Luis Royo - https://www.luisroyo.com/en/
3 - Susano Correia - https://www.instagram.com/susanocorreia/?hl=en

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