Ninguém sonha nas tardes de domingo - Parte I


Salve traça. 
Este conto escrevi em tardes de domingo, tempos passados ainda frescos na garganta. Semana que vem posto a segunda parte e, acreditem, os preconceitos e os clichês ficam ainda piores. 


Ninguém sonha nas tardes de domingo - Parte I 


Entretanto já é tarde de domingo quando ele volta para casa. Casa? Não mencione nas rodas boêmias. Cama só se for de amante. No caso da humilde residência se localizar no bairro nobre da cidade, é melhor guardar silêncio absoluto. O poeta maldito retorna à acolhida higiênica da riqueza, a visão do casarão bege de três andares o perturba, mas oras, tem sono. Sem dinheiro e sem moral escreve sua vida em terceira pessoa para rir das rugas que o papel omite.
O sol vai longe no céu, e os cigarros acabaram. É poeta, mas não fuma pluma. Como vai conseguir dormir? Se andasse com cartão de crédito poderia adquirir uma caixa de charutos; cubanos. Fora de questão! Que espécie de pária da sociedade anda com Credicard Platinum?
          Com asco flutua pela rua de sua casa. Bairro nobre, ostensivo. Os casarões refeitos pelos novos ricos são a corporificação do céu na terra, amém. O povinho que vive nessas casas, em sua maioria, teve sua ascensão nos últimos anos. Apreciadores de sertanejo universitário e pagode baixo calão, os novos ricos não cabem na fantasia mofada de elite provinciana. Ortiz Demóstenes Júnior, atormentado com o ambiente, cospe o amanhecer estragado pelas calçadas limpas da classe dominante. 
         Demóstenes, como prefere ser chamado, caminha rápido e cabisbaixo. Tem vergonha pelo que é, rico, e pelo que finge ser, poeta maldito. Baila desajeitado pela vida, suas fantasias não lhe cabem.
           - Bom dia. -  Diz cumprimentando o vizinho da frente de sua casa.
           - Bom dia?  - Pensa. -  Com um sorriso no rosto? Como pôde?
Envergonha-se pelo bom dia lançado à massa de carne gorda que lava o carro em frente a sua casa. O vizinho é um homem que sabe o que faz. Agora por exemplo, esfrega o carro como quem diz: não preciso fazer isso, mas faço. Observe admirado como faço melhor que qualquer lavador de carros, profissional.
            Lavar o carro; ritual religioso, geralmente executado aos finais de semana, por aqueles que têm nos automóveis e nos títulos de futebol conquistados pelo time do coração, as glórias da existência esporrada pela cegueira de um orgasmo lua de mel.  - Se Demóstenes dissesse o que pensou a política de boa vizinhança iria para a merda, logo, simplesmente compartilhou um sorriso com o vizinho. Este sorriso dói, reverbera no que o poeta queria ser, mas não é.
             Ortiz Demóstenes Júnior, filho de Ortiz Demóstenes Neto, nunca  foi capaz de decidir o que sentia com relação ao pai: amor ou ódio? O velho se afogou em álcool após ser abandonado pela mulher. Deixou como herança o enorme casarão e uma gorda conta no banco, ambos frutos de uma vida falando as palavras certas; lidando com sonhos e promessas: publicitário.
           Como pode alguém com o nome de Júnior ser homem? Fosse homem e ignoraria a massa compacta de gordura que acaricia as curvas do carro recém lançado, recém comprado. Fosse o que diz ser e não teria casarão com ar condicionado e centenas de reais no banco. Fosse o que finge ser, e não seria homem perante o par de olhos poluídos que o fitava.
Ortiz Demóstenes Júnior, pêndulo alucinado entre a simulação e a dissimulação, trancou o portão e olhou novamente para o vizinho. Para aqueles olhos de copo cheio, típico de pessoas que nunca bebem, não porque não desejam, mas, sabe como é, no copo sempre há alguma sujeira para atacar a higiene e o bom senso.
             No caminho para a cama a figura do vizinho bolota toma a mente de Júnior de assalto. Amontoado escroto de carne, preciso transcender sua surdez! Porco gordo, preciso vê-lo na nudez de seus gritos represados. Tenho que mergulhar, sem nojo, em seu sorriso para ver o abismo que se esconde atrás deste outdoor resplandecente em autoadmiração.
Uma imagem vinha à mente do jovem Ortiz: Uma estátua de certezas entalhadas e colocadas sob o pedestal da loucura. Abaixo do monumento uma placa: felicidade privada...A imaginação fluía. Por que vejo mármore naquilo que não passa de carne contaminada de limpeza cotidiana?
            Portão trancado, alarme ativo, luz apagada, ar condicionado ligado. Deita-se.
            Levanta-se.
Não! Poetas malditos não dormem ao meio dia em frescor de fortaleza pessoal, de papai. Desliga o ar-condicionado e aproveita para colocar a segunda de Brahms no aparelho de som. Lança-se ao abraço macio da seda, afunda na cama. Lutando contra o sono, sua vaidade o balança uma última vez. Toma papel e caneta em mãos, anota:
            Ideia conto – Retratar a vida de um gordo capitalista.
Escuta as correntes que movem aquele mar de gordura!
Auto afirmação é a palavra. Ele é mais do que parece? Veja! Você é capaz, pois você enxerga o que para os olhos alienados é invisível. Baseie este personagem no...
No vizinho da frente.
As favas! Não consigo lembrar o nome do bolota.

Imagem de um maldito qualquer em seu habitat. 






Crédito da imagem: Painel pertencente ao álbum O Dobro de Cinco, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 



2 comentários:

Thayna_sp disse...

Ansiosa ja pelo proximo!

Bjks

Estante Velha disse...

Eu não criaria grande expectativas. :)

Um abraço.