Números ed.1

Salve traças!
Hoje estou começando um novo projeto, é uma pequena publicação que distribuirei em minha cidade, chama-se Números. Na primeira edição publico um conto chamado Bílis Negra, o qual posto o início logo abaixo.



  
       Bílis Negra

“Para onde quer que se dirija a intenção assídua da alma, para lá afluem também os espíritos, que são os veículos ou instrumentos da alma. Os espíritos são produzidos no coração com a parte mais sutil do sangue.” Ficino



Lento, afago após afago, o vento o marcou. Calmo, carícia após carícia, o mar o penetrou. O que fora castelo, com tanto esmero edificado, agora era areia; e cada grão trazia consigo, na memória, o retrato de um passado de união. Maria e Maria na sala de sua casa. Maria e a fumaça do cigarro sendo soprada para longe da visão. Uma estante empoeirada, velhos livros, caixas de remédio, o reflexo do sol poente na TV desligada, o teto definhando frente à umidade; Maria e a contemplação. Era uma vez, uma mulher que construiu um castelo para no futuro, perdida na névoa do passado, se perguntar: Em qual gaveta estará aquele retrato de família em que ainda sorríamos? Quanto tempo os sorrisos idos resistirão às traças do presente? Um novo trago, mais fumaça para os pulmões e a imagem do castelo transfigura-se em frio e umidade; é uma masmorra abaixo da superfície, um calabouço de solidão onde carícias e afagos não chegam. Apatia e insensibilidade e mais um trago. Castelos: torres altas, fortes muralhas,  opulentos salões, o necessário para ocultar a escuridão trancafiada sob nossos pés.
Incapaz de conceber o incorpóreo, Maria revê a o imenso abutre que se posta à janela. A silhueta da ave apaga o sol poente daquele velho rosto abandonado na sala. Palavras e fumaça saem juntas da boca da mulher:
- E retorna o anjo negro.
- Nunca me repito tão menos retorno, minha existência é sempre única. Estou aqui para cumprir meu destino assim como você cumprirá o seu. – diz o abutre com uma voz velha e esganiçada.
Um novo trago e impérios caem; crianças viram homens, que por sua vez guerreiam para se tornarem pó; corações se partem feito areia tomada pelo mar; uma velha deixa algo frágil cair, algo raro, inexistente; lágrimas deitam por terra opressor e oprimido; um grande incêndio se extingue com uma chuva torrencial; à sombra de um enorme abutre, uma mulher, em seus quarenta anos, observa o filme exibido pela fumaça expelida de seu pulmão. Uma última vez, ela vagueia os olhos pelo teto amarelo da casa alugada e por fim consente.
Um cigarro é apagado no encosto de braço da poltrona.  
- Leve-me, nada pode piorar.
- Você tem de vir até mim, não o contrário.
Com o abraço da imensa ave o frio tomou-a. E assim foi a partida para o reino esquecido, onde teria seu castelo, seu trono, sua majestade.
Atrás de cada lágrima contida há um reino esquecido.




 Caso tenha se interessado, você pode fazer o download de Números, ed.1 aqui e conferir a história completa.


Créditos: O quadro acima pertence a Ludwig Meiner, para saber mais sobre o artista, ou realizar o download de suas obras clique aqui.

5 comentários:

Thayna disse...

Gostei bastante da história, clima bem construído, e final inusitado.
Gosto bastante de seu blog!

Parabéns

Rodrigo_Sp disse...

Inquietante.

Neiva disse...

Quando você me deu o conto não pensei que fosse tão criativo e a temática em muito densa.
As criaturas que você descreve são extremamente "inquietantes", como dito.
Aguardo o número 2.

João Arruda Cunha disse...

Rafael espero que continue com esse projeto, o primeiro conto ficou muito bom.

Estante Velha disse...

Obrigado pelos comentários.
O segundo Números já está na cabeça, penso em lançá-lo mês q vem; seguindo assim como uma peridiocidade mensal.