Homens Duros, Parte III

Salve traça!
Posto a finalização do conto Homens Duros, quem quiser fazer o donwload do conto completo é só clicar aqui.
Gostaria de dedicar esta meia dúzia de palavras, que tentei amontoar em um conto, aos amigos: Anthony Newman e Randerson Vieira Lobato. Creio que cada um deles saiba a razão da homenagem.





                                                 Parte III – Noite


Taubaté, 29 de abril de 2012.

            Era a noite mais fria do ano, mas todos os anos têm a sua.
Repetição = banalização.
José Dias, após oito anos na cidade, finalmente retornava para roça e seus amigos, ou ao menos as pessoas que mais se aproximavam da dignidade deste termo.
Entre brindes de pinga a memória fluía, removendo a dura crosta que fomentava o silêncio criado pelos oito anos de distância. O papo passeava solto das tardes de pescaria infantis às cicatrizes de amor e dores nas costas presenteadas pelo envelhecer. Homens se reuniam e celebravam o retorno de um amigo, mergulhando profundamente em um turvo redemoinho alcoólico. Sorrisos desfilavam orgulhosos naqueles velhos rostos marcados pelo sol da luta diária, cinco homens; cinco máscaras de pele seca. Banhados pelo cheiro da carne assando e pelo frio da noite, cada vez mais se lançavam em brindes. Não tardou para bebedeira permitir que as línguas se desinibissem, trazendo ao ébrio ar noturno assuntos que há muito deveriam permanecer sepultados. 
            - E o filhão seu Zé, casou? – O velho rosto de seu Camilo, duro e seco, revelava a amputação operada pelo sol da lida diária com a terra, não havia expressão naquela face.
             Os outros três homens mataram rapidamente um gole da brava, a seu modo executavam o “nome do pai”, nada de bom sairia desta conversa.
            - Meu filho é policial agora seu Camilo. – olhando para o horizonte abraçado pela escuridão, seu Zé disse com toda a eloqüência que sua voz permitia.
            - Que bom, meu filho também está curado, casou e tem três molequinhos “arteiros” que só vendo.
            - Meu filho é policial agora seu Camilo – seu Zé encarava a lua e sussurrava, repetia uma oração guardada no passado.
            - É seu Zé, nossos filhos foram amigos demais. Com quantos anos o Alex está agora, 24, 25? Já está na hora de casar, será que ele pensa nisso? – o velho Camilo dizia para os outros amigos da roda de bebedeira, buscava um sorriso companheiro para sua piada, mas não encontrava.
            - Seu Camilo, está tarde, aqui está minha parte da intera. Não tenho mais idade para virar a noite bebendo. – Como uma estátua, cujas cores foram amputadas pelo tempo, seu Zé se levantou, colocou uns trocados na mesa e caminhou rumo a escuridão da velha estrada de terra Pinheirinho.
Uma sinfonia de grilos dava o tom do silêncio. Longos goles foram necessários, mas ainda assim, algo permanecia na garganta, intragável.
O caminho que Zé Dias percorreu até sua casa fora curto demais para apagar a chama da idéia que incendiava seu futuro próximo. Homem criado na rigidez de um passado sem estudos e perspectivas, talhado pelo trabalho precoce e por idéias hereditárias, não seria esta noite que o velho Zé quebraria uma tradição. Seu Chico, o pai deste homem, não levava desaforo para casa, tal o é Zé Dias, seu filho, o velho que entra bufando na calma de sua casa adormecida. Sua cabeça está tomada por um passado que ficara oito anos a espreitar nas sombras de sua memória. Com toda discrição que seu estado alcoólico pôde permitir ele vasculhou as caixas ainda fechadas da mudança incompleta. De facão na mão ele contempla sua desilusão, oito anos e um mesmo pesadelo.
Dez minutos se passaram, no sitio de seu Camilo, até que risadas fossem partidas ao meio pela entrada de seu Zé Dias e seu facão.
- Seu Camilo, meu filho é homem, policial, curado e não admito suas brincadeiras sem graça. – O cuspe voava longe, conforme as palavras eram cuspidas daquela velha boca recheada de meia dúzia de dentes podres.
- Zé, meu moleque não é uma bicha, ele casou e tem filhos, e o seu?
- Seu filho agarrou meu moleque!
- Oras, o Alessandro sempre teve jeito de menininha desde criança. Estou falando alguma mentira aqui? Seu filho é policial? Muito conveniente para ele trabalhar rodeado por homens, não é não?
- Cala a boca Camilo! Seu Zé olha para mim, acalme-se. – Assim disse Arminio, um dos amigos no local, segurando seu Zé, evitando assim que o sangue de Camilo adubasse o chão.
Os olhos de seu Zé, duas bolas brancas apáticas, saltados pelo golpe recebido na cabeça, foram a visão que atormentou o velho Arminio pelo curto espaço de tempo em que viveu após aquela noite. Todas seus pesadelos foram com seu rosto refletido naquele espelho cadavérico que eram os glóbulos oculares de seu Zé dias, amigo de infância. A faísca do facão que caiu da mão do morto, a rajada de vento um pouco mais forte que bateu na porteira deixada aberta, o crepitar do fogo atiçado pelo pedaço de cérebro que voou na grelha. Arminio de Jesus, 61 anos, viu seu Camilo vindo com o pedaço de ferro na direção de seu Zé, e não falou nada, não fez nada, ninguém o fez. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos, [1] capazes de arder a fogueira do arrependimento, dia após dia.
Talvez não tenha sido assim que aconteceu, tudo pode ter se passado de maneira ainda pior. Essa história é minha catarse, meu expurgo, pois alguém tem de quebrar o silêncio, gritar se necessário: Assim morreu seu Zé Dias, pai de um grande amigo de infância.
Ao rever Alex, insensível em sua farda, o corpo de seu pai a seus pés, rindo de uma piada jogada ao vento, me questionei se realmente era aquele o garoto que viveu comigo a adolescência. Aquele policial era um homem desconhecido para mim, tenho essa certeza ao fechar meus olhos para refazer a imagem do garoto com quem cresci e descobri muito sobre a vida. Um menino, que certa vez escreveu-me uma carta que falava das saudades; sim, também sinto saudades dele.
Hoje tenho três filhos e uma mulher para compartilhar a felicidade. Minha vida não é perfeita e nunca será, mas todas as madrugadas, antes de partir para mais dez horas de trabalho, olho para meus filhos dormindo e penso: estou curado, e espero que meus filhos também se descubram curados um dia, pois a doença que meu pai e o de Alex tanto falavam, levou-os ao assassinato e a morte; sei que a moléstia que os atacou não é hereditária e isto sempre me anima a continuar. Embora haja tristeza nestas palavras, não há lágrimas possíveis para Alex e eu, tudo se passou devido a um passado anterior a nossa existência; uma doença de um tempo longínquo que não deveria mais ceifar vidas nos tempos ditos, modernos. 
            O Sol do fim da tarde banha o papel que recebe minhas palavras, acabo de voltar da cadeia onde visitei meu pai. Durante uma hora lutamos para impedir que o silêncio se instalasse entre nós, falamos de todas os aspectos superficiais da vida cotidiana, desta vez, fomos razoavelmente bem sucedidos. É com o peso da noite vindoura que termino meu relato: meu pai não se arrependeu.
           
                       



[1][1] Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis.

5 comentários:

Thayna disse...

Gostei do final, me pegou de surepsa!

Muito legalzim o blog!

bjs

Diego Tum disse...

As palavras finais: ele não se arrependeu são muito fodas!

Estante Velha disse...

Obrigado pelos comentários pessoal!
Um abraço.

Dinho Aeroporto disse...

Curti o texto soh q tem umas hrs em q parece q fica parecendo enximento de linguiça...com td repsteio.
De qlqr forma tua iniciativa eh boa, me identifiquei bastante com o lance dessa geração antiga nunca entender, ou se adaptar, aos novos pensamentos...
Era issoq vc queria dizer com o titulo?

Estante Velha disse...

Era isso TAMBÉM, sua interpretação contemplou uma das camadas do texto, mas existem outras.
Quanto a "questão da linguiça", sim, às vezes eu também sinto que meio que enrolei um pouco, mas é dificil perceber onde. Você poderia me indicar um trecho onde sentiu que eu enrolei?
Muito obrigado pelo comentário, é bom ouvir alguém apontando algo que não gostou.