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A pirâmide


I – O Paiva

            Até quando vou fazer isso? Masoquismo? Nostalgia? Hábito? Necessidade de contato social? Nada melhor para fazer? Fuga...Sabe-se lá porque me arrasto até o bar para encontrá-los. De fato, importa? Como costumam dizer, essa é a vida, e ninguém precisa de mais um anônimo pensando feito porta de banheiro de rodoviária. Quando se cai até a meia idade é indicado parar de se perguntar demais sobre isso tudo. Não dá para rastejar pelo que resta de vida tentando descobrir a lógica do silêncio de cada mendigo de porta de banco. É isto: somos os três amigos e tornamos a nos encontrar para tornarmos uns copos.
Não me agrada, mas convém repetir mentalmente. Eu sou isso. Um cara que acabou sentando em um bar, happy hour, rodeado por pessoas desconhecidas cujo passado nos gruda umas as outras: passamos pelo período de faculdade juntos, deveria ser só isso, mas insistimos. E hoje, não há sorriso que não seja amarelo, não há abraço sem perfume de mofo, não há nostalgia que sirva para algo além de evitar o silêncio. Mesmo os dentes clareados quimicamente do Ferreira, brilham algo de podre ao serem emoldurados em seu rosto de vendedor, bem sucedido, de carros.  E a barriga imensa do Ivan, cada vez mais fazendo jus ao apelido de “o horrível”. Não somos mais os mesmos, aqueles jovens que curtiam tomar umas, com os olhos nas minas, enquanto falavam alto seus sonhos sobre o futuro, não existem mais; há muito tempo.
- E chega o Paiva e sua clássica magrelinha. Ah meu velho, você tem que me deixar te vender um carro. Te faço um descontão, parcelo...É só você pedir. Amigos são para isso! Até você consegue pagar.  – E assim, do alto de seus quase dois metros de orgulho, Ferreira me recebe.  Ele brinda com o vazio, apontando seu copo de uísque para o alto em minha direção. E lá se vai mais uma dose de Red Label para dentro. Minha boca se enche de água.
- Não preciso de carro Ferreira, ao contrário de certas pessoas, não tenho necessidade de colaborar com a destruição do mundo. – Eu rebato, mais por hábito do que por convicção.
- Sim, claro.
- É tão difícil aceitar que alguém não quer um carro?
- Sim, isso mesmo. Olha aí Ivan, nem chegou e já está dando discurso. É um puto mesmo esse Paiva.
Ivan, o horrível, como sempre, empunhando sua arma de longa data, a dose de cerveja, concorda com Ferreira, fazendo lhe um gesto de brinde com o copo, agora vazio, tal qual seu sorriso, discretamente replicado.
Maldito gordo. Tem hora que é melhor falar sozinho viu. Mal cheguei e o Ferreira já começa com suas insinuações. Jogando na minha cara que não tenho carro. Se acha o melhor só porque tem dinheiro. Pobre desgraçado. E ainda insisto com ele. Como se não fosse possível ser bem sucedido na vida e ainda assim pobre. Pobreza é minha opção, uma ação política. Minha bicicleta, minha casa, meu emprego. Eu escolhi isso tudo, não sou um vendido superficial e hipócrita como...Maldita tranca! Emperrando de novo, marca de merda. Mês que vem compro uma tranca descente. E ainda trava justo agora...só para me fazer passar vergonha. Foda-se! Vou beber.
E assim começava mais uma noite. Na porta do velho boteco dos tempos de facul os três se reencontram, novamente. Após um pequeno embate com a tranca da bicicleta Pauva finalmente podia beber tranqüilo sem se preocupar com roubo. E assim ele pulou para o bar, mas não sem antes, carinhosamente, carimbar o pneu de sua magrela com um chute, reprimenda mais do que justa.

II – O Ivan, o horrível

E o que não faço pela vaca da Alcione e aquela peste de moleque? Bastardo filha da puta, literalmente. Faço tudo por eles. Sim, tudo...Para me ver livre deles. Mais um brinde Paiva, por que não? E esse ainda vem com um riso falso de brinde, ou você acha que sua piada teve mesmo graça?
Em que mesmo eu estava pensando? Sim, nos carrapatos que deixei em casa; duas das criaturas mais repulsivas que conheço. Assim como estas com quem sento. Oras Ivan, não seja injusto, eles não são mais repulsivos que a massa com que você tem que trombar pelas ruas diariamente. Laços, amigos: o melhor no pior? Como se você fosse diferente. Ivan, ser repulsivo é uma qualidade inerente ao ser humano, urbano. Urbano, repulsivo: você Ivan. Volta! Para de filosofar: você é diferente. – E por isso brinde, ria; óbvio.
Por que fui me casar com aquela vadia? Minha vida era perfeita: sambinha, cerveja e buceta, de vez em quando. Ok, muito de vez em quando. O mal do homem? A necessidade de sexo que travestimos de amor. Tenho certeza que é por isso que estou com a puta da Alcione. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando, não é assim a sabedoria popular? O idiota aqui acreditou. Tudo por sexo...Sexo? Veja os cachorros, são mais sinceros que muita gente. De costas uns para os outros; transam. A parada é só prazer. Amor? A palavra tenta, mas falha. É Incapaz de disfarçar o fedor do ato, a inconsciência do orgasmo, a natureza animal, natural, reprodutiva. Prazer? Eu digo: chantagem da natureza. Nós o sentimos ao comer, espirrar, cagar, meter, opa; amar. O prazer é a maneira que a natureza encontrou para nos obrigar a seguir em seus trilhos enferrujados. Essa é a viagem, longa, mas sempre nos trilhos. Se quiser olhe para os lados, mas eu não aconselho. Lá vem um brinde. Sim Ivan, agora é a hora de  balançar a cabeça em sinal de aprovação, isso é suficiente para o Paiva e para o Ferreira te deixarem em paz por mais alguns minutos. Não seja injusto, não é tão ruim assim, pelo menos se livra da Alcione por algumas horas. Bora beber, sem pensar. E aí vem mais um brinde. Até que hoje eles estão um pouco mais suportáveis.
Veja o Paiva. Paivão...Queria ser como você cara. Um fracasso sim, mas protegido por toda uma ideologia do mal sucedido, uma luta imaginária contra o sistema. Pobre Paiva, de quantas revoluções participou? Todas, sem exceção, você e seu travesseiro, sob o vigilante olhar do forro do teto e da poeira do ventilador. O invejo por ter ornamentado seu fracasso com utopias. Olha para mim? O que sou? Só um fracassado. Para você, que é branco, é fácil escolher ser pobre. E eu? Negão, sem talento, e saco, para futebol; sem coordenação para o pandeiro; sem estatura para bandido: baixo, gordo e de pinto pequeno. Sou um fracasso até para estereótipo.
Isso Ferreira, o jeito é não pensar. Mas você precisa pensar em que? Seu pai te deixou uma fortuna. “Importadora F&F, porque é sua obrigação realizar seus sonhos”. O que te preocupa além de comer e encher a cara até não poder mais? Será que você ainda mete com aquela gostosa da Jéssica? Será que algum dia você se perguntou o porquê de uma gata daquelas casar com uma pessoa tão feia como você? Tenho certeza que sim, mas deve esconder essas inseguranças no fundo da carteira. Dentre nós você é o que sempre teve o espírito mais prático, e somente por isso te invejo. Um brinde? Claro. Deixa vida me levar, vida leva eu. Bem, hora de evoluir esse porre para algo mais forte:  
- Galera, este papinho está ficando bom. Estou passando para a cachacinha, me acompanham?
- Sai dessa Ivan. O esquema vai ser uma rodada de Red, minha conta. – Retruca Ferreira.
- Larga dessa porra gringa, prefiro mil vezes a boa e velha cachaçinha; tesouro nacional. Esta merda escocesa que você bebe ainda te mata Ferreira. Pega a cachaça lá Ivan, eu te acompanho. Hoje a noite promete.  – Responde, como se esperava, o Paiva.
Promete? É sempre uma promessa; nunca cumprida. Assim como nós três. O jeito é a cachaça mesmo, quem sabe na próxima vez que for ao banheiro o espelho me entregue uma imagem melhor. Promessas? Fico com as certezas: um sono bêbado, sem sonhos, sem notar a presença, o fedor, da minha loira.

III – Ferreira

- E o que foi prometido ninguém prometeu, nem foi tempo perdido... - Animado por um bocado de dozes de Red, Ferreira gritava a música de seus ídolos. Tudo se encaixava, fazia sentido. Segundo sua concepção algumas músicas somente ganhavam sentido ao serem cantadas, gritadas, embebidas em longas tardes de uísque.
- Temos nosso próprio tempo! 
E ao som destas palavras morreu Adenor, que por ali só passava. Seu corpo se chocou contra o importado japonês de Ferreira tal qual uma mosca. No alto de  sua ebriedade e de sua empolgação com o mundo que, agora, fazia sentido pois era acompanhado pelas letras do grande Renato Russo, Ferreira só percebeu o impacto. Não vira nada, só a sombra que se jogou sobre seu carro.
 Traumatismo craniano, seis costelas quebradas, um pulmão perfurado, hemorragia interna, fratura exposta na coxa esquerda e no braço direito, muito cansaço, um tanto de sono e um restinho de sonhos; isso era Adenor. O velho talvez voltasse do trabalho, talvez estivesse indo para o turno noturno. Do bar ou da fábrica? Cidadão de bem ou ladrão? Importa?
Velho, esta foi a conclusão de Ferreira ao ver o corpo jogado no asfalto. Adenor não morreu na hora, após o trauma seu corpo cortou sua consciência, de maneira a preservar funções vitais. Tal fato fez com que seu peito ainda se movesse, se arrastasse, quando Ferreira carinhosamente colocou novecentos reais em um bolso do jeans, agora rasgado, que vestia o velho. O pulmão ainda cumpriria sua função por mais alguns minutos, numa tentativa desesperada da vida de permanecer naquele corpo gasto, mas Ferreira não estaria ali para presenciar essa cena.
Desesperado Ferreira sumiu dali tão rápido quanto apareceu. A rua estava deserta, mas em casos como esse não se pode facilitar para o azar. Tremendo, e um pouco mais sóbrio devido à adrenalina, ele pega seu celular, precisa de ajuda.
- Ô Dinei, seguinte, deu merda mano, preciso dar fim no meu carro.
- Relaxes seu Ferreira! Easy man. Que pegou? Que ocorres?
- Deu merda porra. Peguei um cara na rua.  O velho está vivo, graças à deus, mas como estou trêbado sai andando. A merda é que meu carro está todo zoado, sangue e tudo..Se a polícia me pega estou fudido. Me ajuda mano.
- Porra! Me fala do carro. Está zuado como? Consegues sair de perto da treta?
- Zoado caralho! Sangue para todo lado, mas andando. Mano, dá um jeito nisso para mim. Preciso sumir com o carro. Verba não é problema, me ajuda velho.
- Compreendido. Só que ficar malucão de nervosismo não ajudas em nada. Tem maconha ae? Se não tiver te levo um trago. Tu precisa se acalmar. Vai fazer o seguinte: diriges para o ferro-velho do Caixinha. Lá, esperes no portão. Tou lá em quinze minutos. Combinados?
- Demorou, Dinei. Cara, te devo essa.
Em cinco minutos Ferreira estava no ferro-velho, no ponto combinado. A rua estava deserta, escura, perfeita. O bairro industrial não tinha movimento algum durante a madrugada. Um pouco mais tranquilo, e compactuando com a escuridão do local, Ferreira começou a pensar no acontecido: a culpa chegou forte. Como pude machucar tanto um inocente? Que espécie de pessoa sou eu? Dirigindo por aí machucando vovôs. Se bem que ele deveria estar voltando do bar. Não! Não há desculpa. Mas na certa o dinheiro ajudará bastante. Há males que vem para o bem.
E então Ferreira se lembrou de algo de extrema importância. Merda! Pegou seu celular e ligou 190. Ao ser atendido, rapidamente desligou. Idiota! Podem te rastrear. Com o celular no bolso e o carro trancado Ferreira correu em direção a um orelhão.
Preciso ajudar o homem!










Crédito: Painel de Lourenço Mutarelli em Transubstanciação. Você pode fazer o download aqui.

A insustentável nobreza de ter.


Salve traça,

Hoje começo a postar um conto que, dividido em capítulos e seguindo com a periodicidade semanal, devo terminar em dezembro, às portas de papai-noel. Logo, a conclusão é: se não gostarem, nos vemos mês que vem...




A insustentável nobreza de ter. 



Parte I - No beco.


Há tempos não chove. O calor não é insuportável, é o de sempre. Falta comida. Não há serviço. A dignidade persiste, envergonhada. Junto do que me restava de dinheiro foram-se os amigos. Vendi o carro, despejaram-me de casa. Filha e mulher partiram sem adeus. Resto. Sobram vontades e desejos. Cada corpo que se desvia de mim é um outdoor vendendo o que não posso ter, ser. O cheiro? Não ligo mais, o fedor se tornou comum, é  o mundo que estou:




Estou manco, uma de minhas pernas apodrece. Nada a fazer? Esquece. Este não é o fim do mundo, acredite. Estou assumindo uma perspectiva positiva frente aos fatos. Por que não tentar?  Esta carta é mais um passo de retorno ao topo da montanha. Voltarei a beber felicidade dentro do ar refrescante das noites em quatro paredes. A mudança está em mim, questão de força de vontade. Consegue entender?

A cidade tem crescido, os imóveis se valorizaram, o progresso chegou, até os becos mudaram. Os anos que me esperam piscam gloriosos, logo ali, à frente. Talvez ano que vem já possa visitar meu irmão no Japão. Cruzar o planetinha em vinte quatro horas, perfeito. Ano que vem, com certeza. Só depende de mim. Globalizaram o globo, mas ainda me pergunto se conseguiria dizer, agora, caso meu irmão estivesse aqui, que o amo. O amor só existe entre pares, da maneira que estou agora seria incapaz de olhá-lo nos olhos. Isso é temporário.

O papel está acabando, mas ainda tenho muito que lhe dizer. Vou tentar ser conciso. Faz tanto tempo que não falo com ninguém, por isso percebo uma certa verborragia. Estou meio bobo sabe? Costumava escrever muito, vários formulários, memorandos, relatórios, vez ou outra um cartão de aniversário, um lembrete de carinho na aba de um livro; deveres sociais cotidianos. Enfim, hoje em dia estes hábitos são incomuns por aqui. Não estou reclamando, aprendi com isso, será útil daqui para frente. Só caímos para aprender a levantar, não é? Os erros do passado agora são claros, aprendi com eles. Sou uma nova pessoa.

E vejam só, estou escrevendo demais novamente. Vamos direto ao ponto.

Nobre amigo, Papai Noel,

Desculpe-me pela ausência de contato por todos esses anos. Acredita que cheguei a duvidar de sua existência? Agora que as coisas andam endezembrando, tudo brilha e pisca; vários sonzinhos alegres acompanham os sorrisos estampados pelas ruas, lembrei-me de uma verdade esquecida; de você. Peço-lhe uma nova chance! Só isso, pelas minhas palavras sei que vai perceber que eu mudei, sou um novo homem; amadurecido. Farei acontecer desta vez, garanto, só preciso de uma mãozinha. Com sua ajuda voltarei com Judite, poderei rever minha filha, meus amigos, a vida. Não serei específico, o presente é simples, um novo começo. Sei que fui um bom garoto.

Já ia me esquecendo, embora eu tenha certeza que não se importará de receber minha carta escrita em papel de pão, não custa nada se desculpar, é o que faço. Desculpa. Quando tudo estiver melhor receberá em papel perfumado. 


Com carinho, Júlio Gueha.


Com um sorriso disforme Júlio amassou a folha de papel de pão em que escrevia e jogou-a no chão. Apoiado na parede do beco ele se levantou com dificuldades, sua perna estava cada vez pior. Suor escorreu de sua testa, mas ele estava em pé, curvado, mas sobre duas pernas. A madrugada estava presente, e na praça central tinha maior chance de conseguir um pratinho caridoso de sopa. O difícil, e doloroso, seria chegar lá. Estava em frente ao banco, seu ponto de esmola diurno, no entanto, ali o movimento noturno era inexistente. Já saía do beco quando uma voz lhe chamou a atenção.

- Sim, você foi um bom garoto senhor Júlio. 

Dentro da escuridão do beco havia um velho. Trajava um impecável terno vermelho. Sua presença emanava luz, destacava-se do ambiente, parecia mal colado àquela escuridão. Tinha barba e cabelos brancos. Sua barba, aparada rente ao rosto. Seus cabelos, curtos; penteado básico, estilo empresário. Tinha em mãos o papel de pão no qual Júnior escrevera a carta.

- Não ria, acredite na vida. Estou disposto a lhe conceder o seu pedido. Só depende de você, de fato. Venha comigo.

Atrás do velho uma porta se abriu, luzes piscavam dentro dela. Um ruído característico se propagava do interior do local; sons de uma fábrica. O velho, magro e austero, em toda simpatia apontava o caminho com a mão.

- Vamos, você tem de ir primeiro. Não hesite, liberdade é só mais uma palavra para nada mais a perder.

Júlio olhou profundamente para o rosto do velho, sentia-se atraído por ele. Sua presença era fraternal, emitia cores infantis, protetoras. O estranho homem tinha a voz rouca, muito semelhante a do falecido Martins, seu avô. Não havia como não confiar naquela figura. Se existia desconfiança ela desapareceu perante a visão do sorriso que o velho lhe dirigia.

Júlio entrou e logo após a porta se fechou. 







Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o download aqui.