Salve traça,
Hoje começo a postar um conto que, dividido em capítulos e seguindo com a periodicidade semanal, devo terminar em dezembro, às portas de papai-noel. Logo, a conclusão é: se não gostarem, nos vemos mês que vem...
A insustentável nobreza de ter.
Parte I - No beco.
Há tempos não chove. O calor não é insuportável, é o de sempre. Falta comida. Não há serviço. A dignidade persiste, envergonhada. Junto do que me restava de dinheiro foram-se os amigos. Vendi o carro, despejaram-me de casa. Filha e mulher partiram sem adeus. Resto. Sobram vontades e desejos. Cada corpo que se desvia de mim é um outdoor vendendo o que não posso ter, ser. O cheiro? Não ligo mais, o fedor se tornou comum, é o mundo que estou:
Estou manco, uma de minhas pernas apodrece. Nada a fazer? Esquece. Este não é o fim do mundo, acredite.
Estou assumindo uma perspectiva positiva frente aos fatos. Por que não
tentar? Esta carta é mais um passo de
retorno ao topo da montanha. Voltarei a beber felicidade dentro do ar
refrescante das noites em quatro paredes. A mudança está em mim, questão de
força de vontade. Consegue entender?
A cidade tem crescido, os imóveis se valorizaram,
o progresso chegou, até os becos mudaram. Os anos que me esperam piscam
gloriosos, logo ali, à frente. Talvez ano que vem já possa visitar meu irmão no
Japão. Cruzar o planetinha em vinte quatro horas, perfeito. Ano que vem, com
certeza. Só depende de mim. Globalizaram o globo, mas ainda me pergunto se
conseguiria dizer, agora, caso meu irmão estivesse aqui, que o amo. O amor só existe entre pares, da maneira que estou agora seria incapaz de olhá-lo nos
olhos. Isso é temporário.
O papel está acabando, mas ainda tenho muito que
lhe dizer. Vou tentar ser conciso. Faz tanto tempo que não falo com ninguém,
por isso percebo uma certa verborragia. Estou meio bobo sabe? Costumava
escrever muito, vários formulários, memorandos, relatórios, vez ou outra um
cartão de aniversário, um lembrete de carinho na aba de um livro; deveres
sociais cotidianos. Enfim, hoje em dia estes hábitos são incomuns por aqui. Não
estou reclamando, aprendi com isso, será útil daqui para frente. Só caímos para
aprender a levantar, não é? Os erros do passado agora são claros, aprendi com
eles. Sou uma nova pessoa.
E vejam só, estou escrevendo demais novamente.
Vamos direto ao ponto.
Nobre amigo, Papai Noel,
Desculpe-me pela ausência de contato por todos esses
anos. Acredita que cheguei a duvidar de sua existência? Agora que as coisas andam
endezembrando, tudo brilha e pisca; vários sonzinhos alegres acompanham os
sorrisos estampados pelas ruas, lembrei-me de uma verdade esquecida; de você. Peço-lhe uma nova chance! Só isso, pelas minhas
palavras sei que vai perceber que eu mudei, sou um novo homem; amadurecido. Farei
acontecer desta vez, garanto, só preciso de uma mãozinha. Com sua ajuda
voltarei com Judite, poderei rever minha filha, meus amigos, a vida. Não serei
específico, o presente é simples, um novo começo. Sei que fui um bom garoto.
Já ia me esquecendo, embora eu tenha certeza que
não se importará de receber minha carta escrita em papel de pão, não custa nada
se desculpar, é o que faço. Desculpa. Quando tudo estiver melhor receberá em
papel perfumado.
Com carinho, Júlio Gueha.
Com um sorriso disforme Júlio amassou a folha de
papel de pão em que escrevia e jogou-a no chão. Apoiado na parede do beco ele
se levantou com dificuldades, sua perna estava cada vez pior. Suor escorreu de
sua testa, mas ele estava em pé, curvado, mas sobre duas pernas. A madrugada
estava presente, e na praça central tinha maior chance de conseguir um pratinho
caridoso de sopa. O difícil, e doloroso, seria chegar lá. Estava em frente ao
banco, seu ponto de esmola diurno, no entanto, ali o movimento noturno era inexistente.
Já saía do beco quando uma voz lhe chamou a atenção.
- Sim, você foi um bom garoto senhor Júlio.
Dentro da escuridão do beco havia um velho. Trajava
um impecável terno vermelho. Sua presença emanava luz, destacava-se do
ambiente, parecia mal colado àquela escuridão. Tinha barba e cabelos brancos.
Sua barba, aparada rente ao rosto. Seus cabelos, curtos; penteado básico,
estilo empresário. Tinha em mãos o papel de pão no qual Júnior escrevera a
carta.
- Não ria, acredite na vida. Estou disposto a lhe
conceder o seu pedido. Só depende de você, de fato. Venha comigo.
Atrás do velho uma porta se abriu, luzes piscavam
dentro dela. Um ruído característico se propagava do interior do local; sons de
uma fábrica. O velho, magro e austero, em toda simpatia apontava o caminho com a
mão.
- Vamos, você tem de ir primeiro. Não hesite,
liberdade é só mais uma palavra para nada mais a perder.
Júlio olhou profundamente para o rosto do velho,
sentia-se atraído por ele. Sua presença era fraternal, emitia cores infantis,
protetoras. O estranho homem tinha a voz rouca, muito semelhante a do falecido
Martins, seu avô. Não havia como não confiar naquela figura. Se existia desconfiança ela desapareceu perante a visão do sorriso que o velho
lhe dirigia.
Júlio entrou e logo após a porta se fechou.
Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o download aqui.
Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli.
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