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Números 6 [COMPLETO]- O divino cotidiano

Salve, traças,


Enfim a parte final de Números 6 - O divino cotidiano (leia aqui as outras edições). 
Aproveito esta última introdução para agradecer ao amigo Ito, a quem dedico a história. 

Download do zine: Números 6 - O divino cotidiano. 



Crédito da imagem: Pablo Auladell - O paraíso perdido


Números 6 - A peregrinação

 Salve, traças,

Esta é a segunda parte da história do meu sexto fanzine Números (leia aqui as outras edições). Relendo-a para publicar aqui, percebo que talvez apresente um dos personagens mais desprezíveis que já criei. Enfim, leiam e opinem.  Outra coisa, por enquanto o título parece ser "Revelações por 200 reais", mas estou aceitando sugestões. Sei que o conto é longo, mas gosto de pensar que contém a menor quantidade de letras possível. 
Se você não leu a primeira parte, leia aqui




 
A peregrinação

 

IV

            Será que ela será aquilo tudo ao vivo? Fotos costumam enganar o mais atento observador. Mesmo o mais experiente pode cair no truque da perspectiva alta. Do foco no rosto, do apelo ao bundão / peitão que desvia a atenção do barrigão. Faria diferença? Em um sentido prático? Não. De todo modo, não lhe convinha imaginar que ela usasse de truques tão tolos. Ao menos não novamente. Ainda preciso entender a tentativa falha de manipulação. Por que ela não foi direto ao assunto? Talvez um apego desnecessário ao papel destinado às mulheres. Porra, veja bem, eu querendo que alguém seja mais direto. Eu, o senhor verborragia.  De qualquer forma, estou pagando para ver, não há retorno. – Isso, dentre outros pensamentos, era o que passava por sua cabeça quando disse ao motorista:

- Pode me deixar aqui mesmo. – Estava a um quarteirão de distância do bar onde marcara o encontro.  A ideia era ter tempo para caminhar, elaborar melhor algumas linhas de pensamento e de ação. Isso, é claro, também gerava o efeito colateral positivo de deixar a garrafa de vinho que bebera tomar seu corpo; calmamente.

- São 22 reais.

- Só? Esta noite está começando bem!

            - Tem trocado, não?

- Desculpa, só estou com isso.

           O olhar do motorista, mesmo pelo retrovisor, transmitia tanta raiva que assustaria o mais armado dos covardes.

- Pode ficar com o troco amigo, no momento só estou com notas de 200.

Silêncio.

Uma sirene soa distante.

Silêncio.

Uma nova música começa no rádio.

Tentando amenizar a tensão, afinal não tinha de continuar ouvindo o ruído do motor do táxi, soltou:

- Depois acertamos, sem problemas.

- O que você disse?

-  Pode ficar com o troco, na próxima você me dá desconto.

- Ficar com o seu dinheiro?

- Sim, descontamos em uma outra viagem, o que acha?

- Na próxima? Tá doidão? Tá me tirando? Não preciso de esmola de playboy. “Só estou com notas de duzentos”, sério? Deixar o troco...É cada um que me aparece. Vou arranjar o seu troco.

- Calma, foi só uma sugestão...

- Você vai ficar onde? Quer saber, não importa. Espera aqui. Vou trocar essa merda de dinheiro ali na loja de conveniência e já trago de volta.

- Ok, eu acho... Obrigado? – Mas quando o respondeu o sorriso mental era tão evidente que o lábio se contorceu em direção às orelhas. Involuntariamente, é claro.

Com certeza, voltará com o meu troco. E o sorriso veio fácil, novamente, aos lábios. Preciso me conter. De todo modo, tenho de tentar entender que, como um trabalhador sub-remunerado, é compreensível que um motorista se aproveite de pequenos estratagemas para complementar sua renda. Não há um fator pessoal nessa atitude. Impelido pelas condições sociais, o sujeito age de maneira a sobreviver em um ambiente que lhe é opressor. E ele está certo, é evidente para qualquer um que pense um pouco mais. Não? Só não vejo a necessidade de toda aquela atuação.

Enquanto o táxi se afastava, ele caminhou em direção à bela igreja de inspiração barroca que se avizinhava do ponto onde ocorreria o encontro. As torres, apontando o céu, mostravam a mais bela devoção humana: o apego ao intangível, a necessidade de narrar o mundo, explicando-o. O maior dos dons: criar a própria história. Riu do fato de ter usado o termo “dom”. Um erro bobo, mas algumas higienes são necessárias com relação ao uso da linguagem. Sim, nós nos criamos, uma vez que erigimos no solo de nossa mente o que  significa “ser”. Dar sentido à vida, eis a tarefa hercúlea que esta bela catedral representa! Sentia-se livre ao comungar em pensamentos com aqueles autores que tanto admirava. Existencialismo; em sua boca a palavra era um adjetivo.



Olhando para o céu, entretanto, esquecera-se do asfalto. Quando percebeu a mulher, já estava quase passando por ela. Sentada sobre os degraus da casa de adoração;  junto com o companheiro canino, aguardava o auxílio divino: a providência. Bem, hoje serei eu o servo de Teu Deus. Tais pensamentos lhe faziam cócegas mentais...tinha de segurar a gargalhada. Tirou, então, da carteira duas notas de duzentos e, abaixando-se, entregou-as com a alegria de quem participa da melhoria do tecido social.

 

V

Tinha um rosto a prova de qualquer vaidade. Herdara do pai o táxi e o contrato de aluguel do apartamento no Edom, bairro razoavelmente bem frequentado, lar da classe média que interpreta o paraíso com fantasias de excesso e riqueza. Apaixonado pela derrota, tinha no olhar dos fracassados a companhia para as noites rodando. Roubar de um playboy? Como se houvesse algo que ele tenha e eu não possa ter. Viu naqueles olhos condescendência, pena. De mim? Não...ele teria seu troco. Eu não sou como aqueles colegas de infância que filha-da-putearam à deriva pela vida, esbanjando sorrisos por fazerem dinheiro em cima de otários de nascença e criação. Felicitando um ao outro pela melhor maneira de ganhar um trocado arriscando a existência eterna. Alguns levavam a vida como um vício, outros como um hábito, mas eu compreendi: a existência é a chance concedida por Deus para nos mantermos limpos; uma provação, um desafio de força de vontade; uma maratona, não uma corrida com pódio de chegada e beijo de namorada . O livre-arbítrio é dádiva do “não”. Essa pequena palavra, mas tão grande característica, nos diferencia dos animais e daqueles que têm como “humano” apenas a nomenclatura, não a qualidade. Negar o pecado que nos circunda diariamente e, inabalável, caminhar pelo deserto, pelas brasas do prazer e da iniquidade rumo ao trono do altíssimo, eis o desafio da religião racional.

Não devolver o troco? É isso que ele espera de mim. Olha-me como superior somente por receber mais dinheiro mensalmente. Como se esperasse que pedido de desculpa por existir, por ser mobília em sua vida. Oras, só porque tem pai, mãe...tios e tias e tantos outros pontos de uma rede social que se espalha pelos corredores do poder da cidade. Uma vida que transcorre de “sim” em “sim”. Herdou um sobrenome que o antecede nas interações sociais, e, quando isso não ocorre, utiliza a carteira cheia de notas de duzentos reais como um sorriso simpático para o mundo: posso compartilhar isso com você, quer? Um pessoa que só compreende o “sim”, como poderia se aproximar de Deus?

- Não. Não! Ele terá o troco, eu não uso o linguajar da miséria, seu filha da puta.


VI    

        E por que você não socializa no próprio bar? Não é mais fácil arranjar alguém nesse ambiente? Muitas de suas amigas já perguntaram isso. Como se tivessem alguma sabedoria para compartilhar. Acham que, depois de terem se amarrado em um pau pelo resto da vida, têm as respostas para todo e qualquer relacionamento. Como se o objetivo de todas nós fosse ter uma foda garantida, depois uma criança para amar e cuidar e cuidar e cuidar, e depois uma pica meia bomba para sentar uma vez por mês; com sorte. Sim, amiga, estou esperando pela minha alma gêmea em um bar, em uma sexta de chuva no final do mês. Toda trabalhada no uísque, não se esqueça! E ao recordar-se do álcool que lhe toma as veias, ajeita a altura do vestido e a janela de visão oferecida por seu decote. Escolher o decote ideal é uma arte desprezada. Deve-se mostrar somente o suficiente para gerar o anseio. Não é muito. Enfim, elas nunca entenderiam, afinal nunca frequentaram esse ambiente o suficiente para saberem que o homem que está aqui não é o meu tipo. Meu prazer está em homens na puberdade dos sentimentos. Virgens da malandragem. Incrivelmente cientes da sorte que é estar com alguém como eu.



            Isso não é um “eu” versus “elas”, lembra-se a tempo de finalizar uma discussão consigo própria. Álcool: beba e ganhe gratuitamente um companheiro para monólogos existenciais – eis uma ótima propaganda! Feliz com suas pérolas, senta-se no boteco onde marcara o encontro. Chegou antes, pois necessita quebrar o estereótipo que criara de mulher certinha. É a hora de transformar o cérebro álcool alterado em um pântano de desejo e uísque cowboy.

            Sim, outros tentaram a sorte. O batom se esvaía na boca dos copos enquanto outros balançavam a cabeça, sorriam, pagavam drinques...Tudo para tentar uma aproximação. Obrigado, mas o objetivo é um só. Embora esses senhores a divertissem, não perderia uma noite com eles.

            Vira-o de longe. Vinha da direção da basílica de santo António Maria Gianelli. Caminhava lentamente e olhando ao redor. Ela gostou...estaria pensando no que dizer? Em como começar a conversa? Seria ela o vórtice dos pensamentos daquele completo estranho? Foi quando um cachorro grudou na perna dele com os dentes. Com chutes, ele afastou o animal. Com chutes, garantiu a permanência do bicho em estado de repouso; final. Uma senhora de rua foi então na direção do “boy da noite”. Por quê? Grita a velha, caindo no chão e tentando resgatar o animal da morte. Os chutes prosseguem. Parecem ter, à distância, um alvo duplo. Acertam e acertam. Fortes, decididos e bem sucedidos. O que não deveria ser uma bola; vira. O que não deveria explodir em vermelho; explode. Quem não deveria chorar; chora. Aquele que não deveria ir embora; vai? Vai para onde? Como assim? Ainda estou aqui. Aqui. Aqui, porra!


VII

Compartilhar com o próximo. Que piada de mal gosto. Como se fosse possível termos algo em comum para partilhar. Como se fosse possível ceder algo que interessasse a alguém cuja grande aspiração na vida é permanecer; ser mais um de tantos da espécie que se espalha desenfreadamente. Em que eu ajudaria algo como ela? Em que isso me seria proveitoso? Não preciso dela. Não? Não! Olhe para esse rascunho de pessoa: prostrada nas escadarias da igreja, fantasiada de mendiga, acompanhada por um cachorro que consegue feder mais que a dona. Não precisa de ajuda... Não quer aceitar meu dinheiro? Agora não posso nem fazer-lhe uma boa ação? Olha-me nos olhos e diz não precisar de minha ajuda? Desculpe-me, tomara que morra, velha. Você e seu animal. O surrei até a morte, sim. No entanto, fora ele quem primeiro me atacou. E eu pedi desculpa; ainda. Gostei do que fiz? Não. Tinha escolha? Não.  

A velha não aceitar minha ajuda fora, sem dúvida, a atitude mais estúpida daquela vida. No entanto, analisando com um pouco mais de frieza, ao menos ela assumira a posição de inferior com orgulho, mantendo assim a humanidade; ou melhor, ganhando assim humanidade. Há beleza nisso! Sim, mesmo esse projeto de gente teve a honradez de recusar as facilidades da vida na rua.

Tal qual o fio de Ariadne salvara a bela jovem da depravação provinda de um ser inferior, o minotauro, a atitude dessa velha revela um caminho. Não posso aceitar uma posição subserviente em todas minhas interações sociais. Mesmo ela, pode ensinar-me algo. É meu dever ensinar pelo exemplo, somente assim a evolução social será factível. Foi então que, tentando desculpar-se por ter matado o cão, foi afastado com gritos histéricos. Como esperado, ela não compreendeu. Por quê? Por quê? Oras, só há uma resposta e todos sabem, não? Porque eu posso, porque eu quis.

Estava decidido, tomaria uma atitude. Não posso permitir o caos total. Tome-se o exemplo do taxista. Se lhe perdoasse o roubo, o que seria de todos nós? Não era questão de se apegar ao troco como se precisasse. Nunca. Mas como poderia aceitar tal vagabundagem explícita? Seria contrariar todas as regras que baseiam o contrato social. Aquele homenzinho de merda lembrando-se de mim e sorrindo...Não! Feliz por se dar bem. Alegre por enganar mais um  playboy sem noção. Sei que ele pensou isso. Eu sei. Dá para acreditar? Como se não fosse por minha causa que ele sustenta seja lá a vidinha que tem: os filhos, a mulher permanentemente grávida, o pai e mãe doentes. Dá para aceitar isso não... Esse tipo de gente acha que tenho algum tipo de obrigação com eles. Têm de entender o valor da bondade! Perceber a virtude do doar, o desprendimento solidário de deliberadamente entregar aquilo de que não preciso para que tenham uma chance. Porra! Esse puto está estragando a minha noite! Não vou conseguir conversar com a gostosa pensando nessa afronta. A noite promete estranhas epifanias. – falava para os ares enquanto a sangria de um sorriso escorria por seu rosto deformado pela raiva.

Ou respondo à altura ou em breve não terei uma sociedade de que me orgulhar. Um local seguro onde possa dormir. Vão roubar tudo? Não enquanto eu puder impedir. Aquele motorista sabia que fazia algo errado, mas, oras, se ninguém fala nada, por que não continuar fazendo, não é? Sem crime, sem pecado. Por que não continuar ganhando, troco por troco? Roubando, noite após noite. Hoje não! Eis o livre arbítrio, a capacidade de dizer: “basta!”

Eufórico ele sinalizou para que um táxi parasse.

            - Por favor, siga aquele táxi.

            - Que táxi, senhor?

            Após um momento de dúvida inesperada, ele responde.

            - Pode seguir adiante, agora!

A loucura é areia movediça em noites como essa.

 

 

VIII

            Tentava entender...Sentada no local marcado ela o viu descer do táxi. Observou quando, pensativamente belo, contemplou os céus. Lá estava o alimento de hoje, caminhando em sua direção. Prestava homenagem com o olhar à bela igreja. Ela nem era católica, porém gostou de notar algo não superficial nele. Era grande coisa? Não. Mas em uma noite chuvosa como aquela, todos têm algo a oferecer. Começava a se preparar para recebê-lo com seu sorriso treinado quando o sujeito ajoelhou-se próximo a senhora abandonada à porta da igreja. Doava algo? Que belezinha, será que metia bem? Esses idealistas costumam ter medo de lambuzar a boca em uma boa boquete. E se tivesse nojo de suar? É uma hipótese. Não teve tempo de prosseguir os devaneios a respeito dos caminhos futuros e possíveis. Foi trazida de volta ao presente quando  os chutes raivosos dele lançavam o corpo do cachorro e da mendiga cada vez mais longe. Cada vez era mais dolorido de observar. Por quê? Era esse o mesmo homem com quem conversara no início da noite? Talvez estivesse se confundindo. Com certeza estava, afinal, aquele desconhecido acabara de pedir um táxi, ou seja, aquele merda não era o par escolhido.

         - Mais um uísque, por favor – pediu, já tranquila por ter conseguido controlar o desenrolar descontrolado de sua mente alcoolizada.

            Assim que o garçom lhe entregou o copo, sentiu um olhar distante pousando sobre si. De dentro de um táxi, ele a olhava. O semáforo o prendera por instantes frente a frente com ela. Não havia dúvida, era ele; partindo. Ainda teve a audácia de acenar e mandar-lhe um beijo.

            Mandou-lhe um beijo e foi-se com a liberação verde da sinaleira. Foi-se...

            Como assim? Quando o uísque chegou as suas mãos, encarou-o como quem vislumbra no leito de morte o pai ausente. Responda-me, por quê? E a resposta veio. Por caminhos tortuosos a verdade se revelou. Uma trilha indicada por copos vazios: a do impulso. Seu batom não mais se esvairia em repetidos copos. Nesse momento, seguir aquele olhar parecia o ato racional a ser tomado.  Como ousara...Ela, abandonada?

            Porra, olha o exagero. Pensa mais um pouco. Estava ali por si própria, sim. Gostava de fantasiar ser uma vampira, alimentando-se das emoções alheias. Ou melhor, da emoção: a esperança. Por que precisa daquele merdinha? Não precisa. Contudo, tudo isso não é certo. Havia contas a serem acertadas. Pela mendiga velha, pelo cachorro morto, acima de tudo, por mim.



           








Todas as imagens são de autoria de Lourenço Mutarelli e pertencem ao álbum Mundo pet
Você pode encontrar esse álbum aqui.

Números 6 - O chamado

 Salve, traças,

 Estou começando a publicação do fanzine Números em sua edição 6. O conto ficou um pouco longo, então, antes de publicar o arquivo completo, publicarei a história em três posts por aqui. 
Ainda não tenho o título dessa história, AJUDEM-ME!. 

O chamado

I

Futuro é um artigo de luxo. Ter um “a longo prazo” é um puta privilégio de que ela não desfruta. Com fome, desejaria comer. Cansada, pensaria em despencar na cama. Com tesão e solitária, o plano é sair para meter. Hoje. Agora.

Certas noites precisam do amanhecer, enquanto outras anseiam pela madrugada. Ela só queria se sentir querida, desejada, ser o plano de alguém...Que um ser, em meio àquele deserto, a tivesse como norte. Que a esperança dessa pessoa fosse vê-la novamente. Não confunda a necessidade de desejo alheio com carência. O objetivo dela era tão somente se alimentar da esperança contida na semente do desejo.

Acariciava a tela do celular, dançando com os dedos em busca daquelas pessoas que eram belas, mas no limite da feiura. Ele ou ela tinha de ter um ar de profundidade e inteligência, no entanto não poderia ser distante o suficiente da sociedade para não se importar com a aparência. Sim, é óbvio que o visual é importante. Em um cardápio, escolhemos o alimento pela imagem que mais agrada. Para abrir o apetite, escutava jazz e tomava uísque.

Uma vez localizado o alvo e estabelecida a certeza do interesse mútuo, declarava-se solitária e querendo conhecer alguém. Veja bem, para se saciar, precisava criar o desejo verdadeiro, aquele que não acabava com um jato de porra. Somente assim, aquele brilho esperançoso surgiria no olhar no momento da despedida. Dizer “estou afim de meter” certamente atraíria companhia, mas não era isso que buscava.

Encontrou. Hoje seria um “ele”. Cabelo black power, óculos amplos, descrição engraçadinha e sagaz no perfil. Era um pouco mais novo que o ideal, mas serviria. O papo foi direto. Não gosto de conversar on-line, prefiro contato humano, por que não vamos a um bar? Ela não disse nada disso, ele o fez. Conhecia as linhas de força que comandavam a mente masculina média. À mulher, rezavam os códigos, cabia o papel de apenas insinuar, deveria deixar para o macho as proposições, as escolhas, os convites. Não se importava, era mais prazeroso fazê-lo colocar em palavras aquilo que ela previamente desejava. Marcaram o horário e o local. Era hora de banhar-se.

 


II

A água escorria pelo alto da montanha. Um homem com a loucura do deserto portava um cajado que brandia aos céus com todo o ódio que só o amor fanático pode proporcionar. Relâmpagos cortavam a pele formando irreconhecíveis rostos. Os cabelos longos ditavam os caminhos para a torrente. Seu rosto convidava ao temor. Sua boca vociferava colericamente a verdade; cega. Abaixo da montanha, várias pessoas representadas de costas observavam consternadas a postura vilanesca do velho. O sabão tampava a mulher ajoelhada que se recusava a pagar a devida atenção ao profeta. O calor gerado pela água e pela fricção do sabão trazia uma tonalidade vermelho-sangue à cena. A tinta que rasgara a pele cobria a totalidade das costas. O movimento do corpo, recriava vida na face do senil legislador sacro: o sermão renasce no calor do sangue que se prepara para a vida noturna da capital.

Algumas leis são eternas, – na escuridão do banho quente, ele pensava - há verdades além daquilo que nossa visão entrega. A revelação não pode se dar pelos sentidos calcificados pela podridão do cotidiano. A bucha raspava a pele em um movimento obsessivo; amoroso. O banheiro é  o melhor lugar da casa. Banhar-se em silêncio no ambiente sem luz, limpar o corpo e a mente, clarear o pensamento.

            Repetia esse processo todas as noites antes de começar a trabalhar. Apesar de tudo, ainda precisava de dinheiro para alimentação. Levava uma vida simples e regrada, pois desejava interagir minimamente com o mundo. Sob a luz bruxuleante das velas secava seu corpo. Observava sua figura no espelho de dois metros de altura por um de largura que mantinha em seu quarto. Gostava de admirar seus músculos, se quisesse poderia colocá-los em ação e espremer qualquer um daqueles com quem tinha de conviver. A imensa tatuagem de Moisés no monte Sinai que cobre completamente suas costas o relembra de seu caminho. Traz com orgulho, na ruína do corpo, a marca da revelação.

Veste-se sobriamente, toma um copo de vinho acompanhado por pão e segue para o trabalho. Mais uma noite arrastando perdidos pela carne do desejo que é a madrugada na capital.


III

            Segundo meu psicólogo, eu não deveria brigar com as verdades que não me agradam, pois bem, sou verborrágico e isso não é um defeito, de modo algum! A verborragia é uma das minhas características preferidas. Vejo-a como um índice de superioridade intelectual, afinal, por meio dela desenvolvi a capacidade de articular por meio da linguagem verbal significados que normalmente seriam inatingíveis para o pensamento confortável ao chão do asfalto. Eu poderia atravessar o deserto analisando meu discurso. Dito isso, confesso que há verdade no que dizia minha ex-empregada: “Cê só sabe plantar enganos na nossa cabeça”. Sim, ela dizia rindo. Sim, ainda assim, é uma pérola de sabedoria. Sim, ela falava isso após metermos novamente pela última vez. Sim, ela errou ao interpretar minha necessidade de expressão clara, e talvez excessiva, como um sinal de afeto que atravessasse nossas diferenças e nos unisse em algo mais do que um par de pessoas querendo gozar. Acredito que atualmente ela perceba o erro em se declarar para um homem / pênis cujos desejos se resumiam a uma foda garantida durante o prólogo das noites de sexta.

Do que falamos? Oras, este é o exercício de sinceridade requisitado pelo psicólogo. Embate com a verdade. Trabalho terapêutico de confrontação com o “eu”. Em outras palavras, uma piada bem elaborada por partes de mim que nem mesmo conheço. Labirintos de pistas falsas para um ser único que existe apenas nas planilhas de imposto renda de técnicos contábeis. E lá quero eu saber quem EU sou? Respira. Respira. Volte! Devo controlar o fervor por criar narrativas / justificativas.

Esta é uma tentativa de traçar algoritmos de possibilidades, mapear minhas linha de ação com  aquele sorriso envolto em desejoso batom, flagrante esperança, fragrante tesão. Como é linda! Não há problema nenhum em beleza e ingenuidade andarem juntas, ainda a valorizo, apesar dela ter tentando me manipular feito uma criança de 22 anos. O fato de minha idade ser 22 anos enfraquece o argumento? Crio piadas para o meu próprio riso contido. Ela tentou usar-me e pensou que eu não perceberia. Um gesto lindo que despertou ainda mais o desejo.

Como devo comportar-me com ela? Sigo com o papel a mim atribuído? Explicito o quanto juvenil e óbvia ela fora? Ela compreenderia? Entenderia minha demonstração de intelecto superior a média como uma tentativa de agradá-la ou como um ataque?

In vino veritas. Não deveria fazer isso, porém tudo aconteceu rápido demais e não terei muito tempo para me preparar. Talvez seja positivo. Sinto que esta será uma noite de revelações! 












Crédito das imagens
1 - Não encontrei o autor, aceito ajuda. 
2 - Luis Royo - https://www.luisroyo.com/en/
3 - Susano Correia - https://www.instagram.com/susanocorreia/?hl=en

Números 5

Salve traça!

Tem nova publicação do zine Números, edição 5 agora! Quem diria...
Baixe a sua versão aqui.

Para aquecer, aprecie o início:

“os homens é só disso que precisam, tempo, e é só isso o que têm, o resto não passa de ilusão”.
José Saramago

Se contarmos por tempo suficiente, todas as histórias terminam em morte. Mas, temos tempo? E interesse?
Naquele domingo, todos se sentavam à mesa para o almoço passavam de prólogos para indiretas, porém naquele dia havia um clima de ânsia no ar, necessidade peremptória de expressar tudo até a última letra.
- Isso é só um trabalho, nada mais. Tem gente que daria tudo para estar no seu lugar, gente que ganha a vida catando lixo na rua...e você? Só reclama. Sério? Nossa homem...você cansa. Não fosse as criança arranjava outro, um homem de verdade.
...

Números 4

Salve traça!

Hoje publico Números 4, A Arma (Download aqui.), só que desta vez com uma proposta diferente!
Dentro do Zine, após o conto, há uma espaço em branco, local destinado a intromissão do leitor, ou seja, uma continuação da história. Publicarei neste post todas as continuações que forem enviadas para meu ze-mail. Resumindo, as traças vão poder meter o bedelho à vontade! Aqueles que receberem o Zine impresso também ganharão uma caneta...
Enfim, aproveitem a história escrita, na qual recebi ajuda de Anthony Newman nos momentos concepcionais.

Atualizado em: 24/01/2012 - Inserida a colaboração de Teresa Cristina Bendini - Leia abaixo.

A Arma 




    - A culpa é deste povinho brasileiro, só vive para assistir BBB e futebol.
    - Silas, já estou cansado de ouvir você falar, e falar, e falar. A vida não é uma merda, está uma merda, e isto tem se arrastado por tanto tempo. Estamos aqui, virando copo após copo, acreditando que somos, ou temos, algo de diferente deste povinho brasileiro. Mas sabe a verdade? Somos brasileiros, e pior que o povinho, estudamos e vimos um probleminha ou outro na maneira que as coisas se apresentam, mas e daí? Nós brindamos e filosofamos gastando saliva e dinheiro, fingindo e calando.
    - Olha aí quem fala, o que você tem feito em seu emprego de bancário?
    - E você? Realmente acredita que como professor está fazendo algo para melhorar a nossa realidade?



   

Crédito: Charge de Rafael Sica, presente no extraordinário, Ordinário.

     


                                                      A Arma
                                                                       por Teresa Cristina Bendini

     
      Depois de ter narrado a história ao editor do jornal Zero Hora, Orfeu assinou imediatamente o contrato que o faria cronista daquele jornal por cinco anos.  Isso representava, sem dúvida, uma vitória na vida daquele jovem escritor. Ele tinha apenas 25 anos, sua caneta e nada mais. A danada nunca havia lhe faltado com a letra. Era só apontar em um papel em branco e pronto. Ela disparava a escrever. E sempre algo que lhe valesse alguns trocados. Quando chegou em casa depois daquele dia exaustivo, tratou de guardá-la no cofre da sala. Antes disso, ela gritou:
    -Calma!
    -Eu quero beber um pouco de tinta, não vê que estou acabada? Então Orfeu beijou-a, exercendo sua gratidão. Levando-a até a escrivaninha alimentou-a de tinta fresca.
    -Acabada porquê? Disse ele sorrindo. Acabamos de ganhar um contrato de cinco anos com o jornal mais importante do RG.
    -Matei um homem, sou a arma do crime! Estou apavorada e se eles me prenderem?
    -Prenderem? Como assim?
    -Estou brincando. Jamais eles acreditariam nessa história. Ah meu Deus, porque que eu vivo escrevendo histórias?
Estou exausta!!!
     -Exausta ou exausto, Moacyr? Pare de reclamar, foi você que me deu essa missão. Seu escritor doido!   Porque quis renascer numa caneta?
     -Numa caneta não, na minha caneta!
     -Sim, eles esqueceram de enterrá-la com você. No dia do seu velório tentei achá-la em sua casa. Procurei na escrivaninha, na estante, nos livros e nada. Você tinha sumido! Não do caixão é claro, pois já estava na caneta. Escondeu-se no seu livro mais ridículo. “A mulher que escreveu a Bíblia." e dentro do meu barraco!!!!
Eu, um autodidata! Seu fã desde os quinze anos! Afinal... porque me escolheu?
Eu e eu.

     -Você sabe o que eu penso dos leitores? Esses caras vão mudar o mundo. Karl Marx, Freud, Spinoza, Einstein, Arendt, Lispector, Spielberg. Sem leitura, o que seria desses caras?
     -Epa!!!!! Auto lá! Pare de citar judeus. Que mania é essa de puxar a sardinha pro seu lado?
     -Não é isso! Estou falando de você, Orfeu.
     -Não me compare com Judeus. Sou preto e favelado.
     -Sim. Mas nem por isso deixou de ler um dia sequer os meus livros, mesmo sendo um favelado.
     -Moacyr, você está me cansando. Estou morando temporariamente em sua casa, mas pretendo sair daqui assim que fique conhecido e comece a ganhar dinheiro. Você se lembra do nosso ACORDO?
     -Sim, lógico. Você fica comigo até eu te fazer famoso, daí por diante a alma inserida na caneta é inteiramente sua!
    -Inserida em “outra caneta”, diga-se de passagem, porque essa eu mesmo tratarei de devolver pro bolso do seu presunto!
    -Não antes do meu Best-seller!
    -Do meu, ora essa!
    -Sim, você merece. É um ótimo leitor...e um candidato razoável a escritor.
    -Não acredito que isso esteja acontecendo! Uma caneta que além de falar... ofende!



Números 3

Salve traça!
É com prazer que posto Números Ed.3! Pois é, tudo que é ruim perdura mais do que deveria, já dizia o senso comum.
Nesta edição conto a história dos "13 Macacos", façam o Download.



 Download: Número_ed.3


Créditos desta edição:
Quadros de A piada Mortal, roteiro de Alan Moore e arte de Brian Bolland.
Trechos de Os Sertões, de Euclides da Cunha

Por sinal, apreciem aqui um trecho, deveras belo, na íntegra.


Higrômetros singulares

            Não a observamos através dos rigorismos dos processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colunas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado, uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho A coronha da mannlincher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixará-o ali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia o turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absolto mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Vanderlei; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos . Ficou quase em pé, com as patas dianteiras frimes num ressalto da pedra...E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as crinas ondulantes...
Quando aquelas lufadas, caindo às ubitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto: cada partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.
Fora disto – nas longas calmarias, fenômenos ópticos bizzarros.
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se para os descampos, ao longe, não se distinguia o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil , e não distinguia a base das montanhas, com que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse e refrangesse e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes.


 Excerto de Os Sertões, de Euclides da Cunha.



Números ed.2


Salve traça!
Na página de Downloads já está disponível a segunda edição de Números. 
Lanço aqui o inicio do conto, que se chama Cara e Coroa.
Espero que apreciem estas letras especialmente envelhecidas.




Cara



    Dedicação e entrega total a religião tais foram as escolhas de João, que neste instante revisava mentalmente as dádivas alcançadas devido ao apego às suas crenças. A casa no condomínio de alto nível, o carro importado, a filha prestes a nascer, a mulher com quem se casara, no entanto a enunciação cíclica de recompensas não afastava seus olhos dos jovens seios a sua frente, tenros, pêssegos implorando pela colheita, sua boca compactuava com a imagem mental,  paladar excitado; deguste do desejo. Casa, carro, mulher, filha, filha e coxas magras brilhantes, ainda em desenvolvimento, entregues a admiração, ofertadas ao deleite. Como podia usar uma roupa tão curta? Casa na praia, moto de mil cilindradas, férias na Europa e uma calcinha rosa, seria ainda decorada de ursinhos? Ou seriam estrelinhas? Ela já superou a temática infantil? Sítio no campo, apartamento na capital, mas teria ela pelinhos? Loiros, tal qual os cabelos? A mesa de mogno recebia carinhos enquanto a boca salivava.
    - Somente deus pode ajudar seu pai, minha criança. Não somos uma instituição de caridade, você tem idéia de quantas pessoas vem aqui pedir dinheiro?  - questiona o jovem pastor de dentro de seu elegante terno.
    - Mas pastor João, se meu pai não tomar estes remédios...
    - Somente o caminho do senhor leva à salvação. As portas na vida de seu pai se abrirão se ele buscar a presença daquele que tanto o ama. Nosso senhor Jesus Cristo acolhe aqueles que adentram sua casa. Traga seu pai ao culto e vocês serão abençoados.
    - Como ele virá ao culto morto? - as palavras tropeçam na língua da menina.
     Cabisbaixa Sônia mergulha na visão de seus chinelos amarelos. Seus cabelos loiro-encaracolados resplandecem de juventude. Sua mão, inquieta, corre as coxas, como se uma coceira fosse o problema.
    - O senhor não pode ajudar, somente dessa vez? – sussurra.
    Carne vermelha, quente, os olhos do pastor invejam as pequeninas mãos, anseiam por tocar aquelas coxas que as unhas marcadas pelas tarefas diárias coçam. João, incapaz de manter o olhar, abaixa também a cabeça. Encara-se a frio, reconhece o homem que escolhera representar e responde.


    - Sônia, talvez você seja muito jovem para entender, uma garota ainda, mas compreenda, somente duas pessoas podem ajudar a seu pai: deus e ele próprio. Se eu desse dinheiro a seu pai não o estaria ajudando em nada. Ele precisa abrir os olhos e aceitar o caminho de deus.
    As palavras do pastor ecoavam em Sônia, eram conhecidas, como se viessem sendo repetidas há tempos. Um falatório que não lhe dizia nada, “coisa além”, incapaz de conexão com a vida cotidiana de uma garota de12 anos que cuidava do pai, bêbado e doente. A única certeza que a menina detinha é que precisava de ajuda, e talvez, fosse sua responsabilidade tomar o controle da situação. Àquele par de límpidos olhos morenos não servia a inocência, que tão bem vestia o corpo em promessa de flor.
    João levanta-se, caminha até a estante onde uma bíblia ilustrada decora o ambiente. No caminho repara no pescoço de Sônia, na nuca exposta pelos cabelos presos, sua boca se manifesta, novamente. Folheando a bíblia ele busca fuga, precisa ofertar palavras sábias, é o mínimo, mas a memória lhe foge. Inesperado, o abraço da menina o arrepia. A garota se aperta contra seu corpo e um cheiro de produtos de limpeza sobe-lhe ao nariz. De olhos fechados respira fundo, um erro, na escuridão a mente exibe o filme que os olhos anseiam ver. Na barriga sente os seios ainda em formação da criança, abraço apertado, segundos de prazer, a ereção é impossível de ser disfarçada. Precisa se desvencilhar.
    - Se quer ajudar seu pai traga-o ao culto esta noite. Isto é tudo, agora tenho de tratar de outros assuntos. Adeus.






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Crédito da imagem :Tamburini - Ranxerox.

Números ed.1

Salve traças!
Hoje estou começando um novo projeto, é uma pequena publicação que distribuirei em minha cidade, chama-se Números. Na primeira edição publico um conto chamado Bílis Negra, o qual posto o início logo abaixo.



  
       Bílis Negra

“Para onde quer que se dirija a intenção assídua da alma, para lá afluem também os espíritos, que são os veículos ou instrumentos da alma. Os espíritos são produzidos no coração com a parte mais sutil do sangue.” Ficino



Lento, afago após afago, o vento o marcou. Calmo, carícia após carícia, o mar o penetrou. O que fora castelo, com tanto esmero edificado, agora era areia; e cada grão trazia consigo, na memória, o retrato de um passado de união. Maria e Maria na sala de sua casa. Maria e a fumaça do cigarro sendo soprada para longe da visão. Uma estante empoeirada, velhos livros, caixas de remédio, o reflexo do sol poente na TV desligada, o teto definhando frente à umidade; Maria e a contemplação. Era uma vez, uma mulher que construiu um castelo para no futuro, perdida na névoa do passado, se perguntar: Em qual gaveta estará aquele retrato de família em que ainda sorríamos? Quanto tempo os sorrisos idos resistirão às traças do presente? Um novo trago, mais fumaça para os pulmões e a imagem do castelo transfigura-se em frio e umidade; é uma masmorra abaixo da superfície, um calabouço de solidão onde carícias e afagos não chegam. Apatia e insensibilidade e mais um trago. Castelos: torres altas, fortes muralhas,  opulentos salões, o necessário para ocultar a escuridão trancafiada sob nossos pés.
Incapaz de conceber o incorpóreo, Maria revê a o imenso abutre que se posta à janela. A silhueta da ave apaga o sol poente daquele velho rosto abandonado na sala. Palavras e fumaça saem juntas da boca da mulher:
- E retorna o anjo negro.
- Nunca me repito tão menos retorno, minha existência é sempre única. Estou aqui para cumprir meu destino assim como você cumprirá o seu. – diz o abutre com uma voz velha e esganiçada.
Um novo trago e impérios caem; crianças viram homens, que por sua vez guerreiam para se tornarem pó; corações se partem feito areia tomada pelo mar; uma velha deixa algo frágil cair, algo raro, inexistente; lágrimas deitam por terra opressor e oprimido; um grande incêndio se extingue com uma chuva torrencial; à sombra de um enorme abutre, uma mulher, em seus quarenta anos, observa o filme exibido pela fumaça expelida de seu pulmão. Uma última vez, ela vagueia os olhos pelo teto amarelo da casa alugada e por fim consente.
Um cigarro é apagado no encosto de braço da poltrona.  
- Leve-me, nada pode piorar.
- Você tem de vir até mim, não o contrário.
Com o abraço da imensa ave o frio tomou-a. E assim foi a partida para o reino esquecido, onde teria seu castelo, seu trono, sua majestade.
Atrás de cada lágrima contida há um reino esquecido.




 Caso tenha se interessado, você pode fazer o download de Números, ed.1 aqui e conferir a história completa.


Créditos: O quadro acima pertence a Ludwig Meiner, para saber mais sobre o artista, ou realizar o download de suas obras clique aqui.