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À deriva na ressaca de um mundo acabado, do qual só resta nostalgia


I -  Cigarros


- Pode o destino ser uma punição? Sim, nós envelhecemos. Mas pense, em algum momento passou pela sua cabeça que não aconteceria? Nunca pensou na morte?

- Esse discurso todo só porque pedi um cigarro, Maria Luísa?

- As vezes você me cansa...sabe? Lembra quando sua pressão subiu e você desmaiou na rua? "Ó meu Deus! Pessoas tiveram que me ajudar, um ônibus parou e desceu até o motorista para me socorrer. Pararam o trânsito e chamaram a ambulância". E, imagina o que mais te perturba, Francisco? Te olhavam com pena...Sim, Francisco, pena. Claro, viam a porra de um velho sendo levado para o hospital após cair sozinho no meio do trânsito. O que você queria que sentissem? Francisco. Chico. Seu Chico, você é velho. Nós somos VELHOS, custa tanto aceitar a imagem no espelho?
- Você fala isso porque não estava lá. Ficar sentado no chão esperando uma ambulância, rodeado por desconhecidos. A vergonha. Sei que sou velho, e por isso mesmo não quero mais passar por isso; se der para evitar. Lembro-me muito bem dos olhares...todos os passageiros do ônibus. Depois, carro por carro, passando lentamente para matar a curiosidade. O velhote; coitado.
- Você deveria agradecer que teve, ao menos, alguns samaritanos para ajudá-lo. Pior seria ficar caído na rua sem socorro algum.
- Certo, certo. Tem razão...sou velho para caralho e o escambau. Mas me escuta, você não tem de buscar a ração do Rei? Então... Vamos ao mercadinho, compramos a ração do Rei e aproveitamos para pegar meu maço de cigarritos. O que acha? Sem brigas?
- Se você tem tanto medo de andar sozinho na rua, não deveria fumar. Ainda mais sabendo dos seus problem...
- Vamos Rei? Vamos sair de carro com mamãe e papai para buscar sua comidinha?
- Ah...foda-se, velho teimoso. 

II - Destinos

No Brasil, todos os dias são quentes? Sim, a maioria e aquela sexta fazia parte da porção em que o inferno se estabelecia sobre o asfalto da cidade. Francisco, Chico, o Seu Chico, estava a quinze minutos no carro tentando atenuar o desconforto da presença de Rei, o cachorro, com qualquer ruído do rádio. Se ao menos tivesse gasolina suficiente para deixar o ar-condicionado ligado. Se ao menos pudesse abrir todas as janelas sem a praga latir para toda alma vivente passando pela calçada. Se ao menos o calor não colasse a pele suada no banco. Se ao menos tivesse conseguido ter filhos, talvez tudo fosse diferente, sem necessidade de cigarros, cachorros e desmaios pela rua. Talvez nada mudasse; hipóteses para tempo ocioso que foram interrompidas pelo latido estridente de Rei chamando a atenção para a mulher à janela.
- O senhor é o Seu Chico?
- Sim, sou. Por quê?
- A sua mulher precisa do senhor, ela desmaiou. Já chamamos a ambulância.
           Respirando fundo, em choque, Chico saiu do carro. Em alguns passos chegou. Lá estava ela, estendida no chão, ao lado do caixa. Um pedaço de carne caído, largado; esparramado e chamando a atenção. Francisco ajoelhou-se, tomou-a pelos ombros e chamou.
- Maria Luísa. Luísa. Acorda!

- Seu Chico – disse o velho dono da mercearia – acho que ela teve um ataque cardíaco.
Francisco, Chico, o Seu Chico, encarou-o, lembrou-se de todas as brincadeirinhas desnecessárias que o velho tinha com sua mulher. Sempre empacotando as compras com um comentário sobre o tempo, uma piadinha sobre os últimos acontecimentos. Filho de uma puta.
Ao pé do ouvido, chamou pela esposa mais uma vez, porém a verdade ficava evidente. Não havia mais aquela Maria Luísa da briga rotineira.  Sem movimento, respiração e vida, sobrava o corpo. Como pôde fazer isso comigo? 
Francisco, Chico, o Seu Chico, o velho, abraçou-a em uma tentativa de passar calor do corpo ainda vivo para o que se esvaíra. Vive, Maria Luísa. Não morre! Não aqui, não na frente de todo mundo. – Pensava, já fazendo promessas que nunca cumpriria.
- A ambulância está a caminho, Seu Chico, vem, vamos levantar. – dizia a jovem atendente de caixa.
           Francisco, Chico, o Seu Chico, o velho viúvo, fechou os olhos com toda força até ver o mundo como uma televisão sem sinal. O que fazer? Na morte, a vida torna-se insuportável, absurda e completamente compreensível. Sentia o calor da juventude ao seu lado, a atendente de caixa desconhecida, vendo-o assim, jogado, abraçado com um cadáver. O que pensaria dele? A mulher era um corpo frio, ele um corpo morno, mas aquela que lhe ofertava a mão era quente.
           Eu tenho de chorar? Abrir os olhos? Agir? A cada momento que passava junto com a esposa invejava-a mais. Antes fosse ele o morto a ocupar o tempo dos outros. Respire fundo. Olhe o mundo, analise, tome decisões. Juntando coragem Francisco, Chico, o Seu Chico, o pobre velho viúvo, vagarosamente, vira-se. Vê, enfim, a atendente loira e não tão jovem quanto esperava. Encara o maldito dono da mercearia. O puto tem uma toalha na mão. Ao redor, o pequeno supermercado está parado. Há curiosidade estagnada contemplando a cena vergonhosa; desconhecidos e conhecidos. E eu, aqui, ator trágico de uma maldita comédia! Respira fundo e levanta, porra. Mas vejam só que caralho, o maldito cobrindo o rosto da minha mulher com a toalha.
- A ambulância está vindo?
- Sim, já chamamos. – Responde a loira, não tão bela.
            Francisco, Chico, o Seu Chico, o pobre velho viúvo e abandonado, vê caída a sacola com o que Maria Luísa comprara. Dentro a ração do Rei, um ossinho de brinquedo, um pacote de ovos com alguns ainda intactos e um pouco de queijo. Revirando as compras, gema e clara se misturam com velhice  e queijo. Tira os objetos, apressadamente, joga-os no chão. O tempo não passa. Olha para os olhos que o rodeiam. A angústia é contagiante; viral. A possibilidade de uma vida escorre de sua mão. O almoço, seu e de Rei, jogado no chão, assim como a cozinheira.
            E não há um maldito maço de cigarros.
Francisco, Chico, o Seu Francisco, o velho viúvo, se levanta enquanto limpa as mãos com a toalha que fora colocada sobre o rosto da mulher.
- Preciso de um cigarro.
         Correndo, a atendente abre caminho no círculo de curiosos. Traz um maço de cigarros e o isqueiro. Tenta, sem sucesso, abrir a embalagem. Francisco, Chico, o Seu Francisco, calmamente, toma daquelas não tão belas mãos a tarefa. Deixe comigo, estou acostumado. Com os cinco minutos de paz fumegante em mãos, dirigi-se para fora da mercadinho. Na porta, no pequeno degrau, senta-se para desfrutar da calma que entra pelos pulmões. Até a ambulância não chegar, tenho ainda alguns minutos para gastar.
        Os homens de branco chegaram depois de três cigarros e levaram o corpo de Maria Luísa. Francisco, Chico, disse que seguiria a ambulância, para acertar os detalhes no hospital. Todos se opuseram a ideia, queriam que ele fosse junto com a mulher. Não, não desta vez.
        A sirene ainda podia ser ouvida quando chegou ao carro. À sombra de uma árvore, ofegante, estava Rei. Devia ter pulado pela janela da porta da frente, incapaz de aguentar o calor do ambiente isolado. Francisco saía com o carro quando o cachorro correu em sua direção. Acelerou.
        No semáforo, pensou no que acontecera. Buzinas o trouxeram de volta ao mundo. Não, não havia do que se envergonhar. Olhou para o banco dos passageiros procurando e encontrou seus cigarros. Ligou o ar-condicionado e seguiu para o hospital. A velhice não é uma punição, é apenas destino. Ria.




Crédito da imagem: Flávio Carvalho - Série trágica. 

A carreta da Morte - Parte I


Quatro anos atrás, o primeiro post da Estante Velha comentava a copa do mundo de 2006. Hoje, final da copa de 2010, escrevo com felicidade por ver que, mesmo que pouco, evoluí ao longo destes quatro anos. Espero ainda estar aqui em 2014. Espero que gostem da primeira parte da Carreta da morte.


 Carniceiro



"" A literatura emana das trevas do abismo entre as palavras e os significados."



Que a vida não é apenas preto e branco já me convenci. Os vilões esperavam na esquina e fingiam ter uma arma. Os vilões passavam em seus carros importados em ternos de cinco mil reais e fingiam felicidade.Os vilões acordavam cedo, todas as manhãs, olhavam-se sonolentos no espelho e saíam atrasados para fabricar o lixo das ruas. Os vilões separavam a grande massa de existências em categorias: heróis e vilões. Esta manhã, no beco, havia um cão morto com marcas de pneu no ventre rasgado. Eu sorri.
            A única certeza de qualquer crime é a minha culpa. Ajoelhado rezo por um álibi, permaneço assim o tempo suficiente para sorrir. A imaginação não poderia inventar tantas diversas contrariedades quantas as há no coração de cada um. Luto nesta guerra somente para deixar todos meus companheiros para trás. Que a bala a mim destinada venha por fim às lágrimas que um dia hão de rolar. Espero não sorrir.
           


            Assim escrevia em seu diário, sentado no teto da velha Kombi 69. O clima noturno e a iluminação contribuíam para a angústia, sem falar na solidão, gerar aquelas letras dramáticas no diário do Diabo.Cupido e Morte dormiam abraçadas, logo abaixo, no interior do automóvel. O Cavaleiro saíra horas atrás em busca de gasolina. Não muito distante dali, O Anjo e o Imperador acorriam a algumas necessidades do corpo.
            Sozinho, o Diabo refazia em sua mente os últimos meses desde o inicio da guerra. Tudo parecia mais evidente agora, e ele gostava disso. Uma vez que todas suas ações podem ser as ultimas, uma vez que cada dia se mostra como o derradeiro, tudo parece, enfim, tomar cores de realidade: Não há mais a necessidade de máscaras. Sem segurança e responsabilidade, sem planos de vida, sem Madalena, sem sexo...aqueles lábios...
            Um ruído vindo do beco o desperta rapidamente de seu momento de aparente distração. Sem hesitar ele pega a pistola, ao lado do caderno, e em um movimento rápido dispara. Um tiro.
Com um pulo, o Diabo se desloca do alto do veículo para o lado de sua vítima. Lamenta-se pela falta de precisão. Mirou a cabeça, mas acertara o pescoço. O cachorro ainda estava vivo, emitia estranhos sons. Morte, já acordada, abria a porta da Kombi com uma faca de cozinha em mãos.
            - Só um cachorro? Você gastou uma bala com um carniceiro? – Dizia  irritada.
            - Não gosto de animais que se alimentam de restos.
            - Cale-se. - disse a Morte enquanto dava um fim no sofrimento do cachorro – Onde está o Anjo? Aquele canalha deveria ser o vigia desta noite.
            - Deve estar brincando com a coroa do Imperador em algum beco escuro aqui por perto.
            - Se dependesse de mim esta pistola não estaria com você. É bom de mira, e daí? A bala que você usou para matar este cachorro pode nos faltar quando formos atacados por um bando de carniceiros.
            - Como se existisse algo além de carniceiros...este cachorro se alimenta de restos, tal como nós. – o sorriso no rosto do jovem Diabo era inevitável.
            - Cala a boca!  Vamos, me ajuda a levá-lo para dentro. Amanhã ao menos teremos carne para comer.
            - Sempre temos carne para comer.
            - Será que tudo tem de ser uma piada para você?
            - Sempre foi uma piada, você que demorou a entender.