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Fantoche


Não estava contente. Como poderia? O presente era o girar constante do disco do rei e a melodia trazia certeza. Elas morreram! Só; estava a salvo do vazio do mundo satisfatório para pessoas razoáveis. Dobrava as roupas recém-passadas: roupa de casa, roupa de cama, roupa de mesa, roupa íntima, roupa oca, roupa sua. Os planos para o dia eram a manutenção do estado de limpeza hospitalar da casa, e da vida, no entanto, feito um soluço mental, uma ideia saltava entre pensamentos mecânicos.

O vazio, sempre tão contido, ansiava por forma. Não, hoje não...Sabia como agir. Foi até o banheiro e lavou o rosto dando às mãos o carinho de uma camada de hidratante e à face a proteção de creme rejuvenescedor. Os olhos captaram uma imagem fugaz: adultecera rápido demais, vestia uma fantasia velha e carcomida de sapiência insustentável frente ao olhar atento. O reflexo ensaiava um sorriso cujos dentes brilhavam a felicidade de uma lâmpada nunca acesa. Em um momento de fraqueza, caminhou para o quarto pronto para se unir à cama. Morrer é mais fácil que nascer...soluçavam os pensamentos.

Amparado pelo abraço do colchão, uma voz o trouxe de volta à superfície da vida.

- Deitado já? É cedo ainda.

 Calmamente arrumou os cabelos com as mãos e se virou. Com um sorriso colado ao rosto, respondeu:

- Estou indisposto, um soluço horrível.

- Deixa disso, me ajuda. Preciso me arrumar. Hoje a noite será boa! Vou-me encontrar com o pessoal do trabalho e o doutor estará lá.

- Vejam só quem está toda cheia de planos. Controle esses hormônios garota. 

- Vai me ajudar ou vai ficar aí beijando o travesseiro.

 Toda aquela vida e ânsia por se conectar lançando-se à imprevisibilidade do momento eram atraentes. Contagiado levantou-se e foi até a penteadeira. Sentou-a e com uma escova começou a organizar os longos e loiros fios de cabelo dizendo o seu amor com os dedos. Aqueles sonhos requentados de filmes copiados de Hollywood traziam movimento para o pensamento, algo parecido com vida, mesmo que de plástico. Uma voz o chamava para fora:

-Sabe, tive uma ideia, por que você não vem comigo? Ou vai me dizer que tem algum plano para hoje a noite? O que acha de tirar um pouco as teias de aranha?

- Olha o respeito menina! - Disse com um sorriso insinuante. 

  A possibilidade era tentadora e o lisonjeava. Não pensava mais em receber esse tipo de convite. Para ele, sua presença transmitia uma espécie de vírus. Sua velhice era uma doença que permitia que interagisse somente com pessoas com a mesma patologia. Um encontro entre amigos? Jovens ao redor da mesa conversando sem objetivo algum além de estar ali, tirando prazer da presença alheia e da fertilidade do futuro? Era uma ideia encantadora, todavia, seria mesmo um convite, ou apenas um educado afago de piedade que, logicamente, seria compreendido e, portanto, educadamente negado?

- Não brinque assim, vai que eu aceito. Não quero te fazer passar vergonha.

- Como você é bobo. Está decidido, iremos!

 Sem deixar que o silêncio disseminasse dúvidas e inseguranças, respondeu:

- Iremos então, - com toda a determinação de um crepúsculo, disse - mas deixe que eu termine de te arrumar.

 Aceitar aquela afirmativa, aquela possibilidade de convívio, pareceu tão absurdo aos seus ouvidos que nem a pele algodoada que tocava o trouxe para o agora. Como proceder? Aceitara, porém não poderia simplesmente ir sem se encerrar em um labirinto de “talvez”?

- Tem certeza que não atrapalharei? Que espécie de garota chama seu pai para acompanhá-la?

- Uma que o ama e sabe que ele está precisando de um pouco de sangue circulando rápido pelo corpo. Deixa disso, está decidido. Agora mudemos de assunto. O encontro é social: umas cervejas e meia dúzia de palavras ao vento. Você aguenta umas horas sem expressar tristeza em cada som e movimento?

- Você aguenta?

 A resposta instaurou um silêncio laborioso, que buscava ser quebrado, mas era movediço, traiçoeiro. Restava permanecer no pragmático penteado, mesmo que cada vez mais aqueles fios se assemelhassem a plástico, mesmo que tudo parecesse falso.

- Desculpe-me, fui injusta. Sinto falta de mamãe tanto quanto você, apenas tento amenizar a dor de maneira diferente. Acho que no último momento ainda estaremos pensando na fatalidade daquele acidente e da falta que ela nos faz. Não há resposta certa ou modo eficiente para lidar com a ausência. Você busca o silêncio; eu, o ruído. Você o vazio; eu, a completude. De fato, talvez só falhemos de maneiras diferentes, vai saber. Vamos tentar do meu jeito esta noite, pai?

- Sim, vamos. - Respondeu com o máximo de felicidade que podia encenar. Queria abraçá-la e deixar fluir as lágrimas, entretanto seria egoísmo e esta era uma noite para compartilharem felicidade, não tristeza. Acariciou com os olhos o retrato da família. Ele, a mulher e a filha na praia grande, em Ubatuba: férias, calor, suor, risadas e música; a última viagem das duas. Por que ele teve de sobreviver? Isso era traição.

- Meu cabelo já está lindo pai, vai se arrumar enquanto me maquio. - Disse a filha, removendo-o de um redemoinho que talvez o afogasse em um caminho sem retorno.

- Está bem, nos vemos em breve então.

 Estava feliz? No mesmo sentido em que uma lebre se compraz em fazer do corpo. Existem dores que acalantam e acompanhar a filha faria bem a ela, e talvez a ele. O que tinha a perder? Internado naquela realidade, bastava renunciar à paz irrepreensível do velório contínuo que chamava vida. 

 Banhou-se, barbeou-se e se vestiu. No espelho viu o nascer de um sorriso. Perfumou-se e saiu, projeto de novo homem. Não se sentia assim desde a última vez que sairá, na noite passada. Sim, talvez fosse um pouco dramático.

- Vamos filha! - Disse, tomando-a no colo e caminhando glorioso, tal qual uma aranha presa em sua própria teia, fantoche de si própria. 











Créditos:
Imagem 1 - Asua Yordanova: https://www.artstation.com/asya_yordanova
Imagem 2 - Miles Johnston: https://www.instagram.com/p/B6tFObXJPAM/

A mulher das dunas


    Amanheça, ela pensa. Na penumbra a carícia delineia a vida daquele que está ali, seu marido. Os olhos, a orelha, a boca. A geografia desbravada pelo tempo deveria ser conhecida? Com os dedos tenta marcar fronteira, estabelecer demarcações permanentes, transformar o que é estranho em familiar. Afinal, são quase dez anos de casamento. A noite insiste em abandoná-la aos gracejos do desconhecido, da imaginação. Adentra os cabelos, agora escassos, mas ainda grossos. Na escuridão ainda são escuros, como se o ambiente parasse o tempo. Viaja com os dedos pelas orelhas, protetoras do abrigo do som. Quanto de suas palavras ali morrem? Quanto de si perde a luz naquela caverna? Detém-se à beira de um sussurro. A hora é de silêncio. Cala! Não. Agora é a única hora. No ouvido, uma declaração: amo. Segue viagem e alcança os lábios. O toque é o reencontro de velhos amigos: propício à nostalgia e fabulações de futuros. O odor traz à memória as noites onde o vinho era apenas fogo. Os olhos...fechados. Não a refletem mas também não julgam. Uma tosse, um movimento, ele se vira. Uma vez mais, as costas.  Mesmo no silêncio da contemplação, a negação perdura. 
    A manhã não chega, mas ela amanheceu. Levanta-se com dificuldade. Ainda lhe dói o ventre, as pernas, a face, a devoção, a noite. No banheiro aceita a acolhida quente da água, mas recusa-se ao julgamento do espelho, teme que seu rosto esteja marcado pelo amor excessivo que ocorrera. Perfuma-se, veste-se, penteia-se com o auxílio do tato. Está pronta? Caminha em nuvens pelo quarto, não quer roubar-lhe o sono com passos brutos. Fecha a porta com o afeto de um abraço em um velório.
     Preparar o café é a rotina que a afasta da noite. Pela janela, ela vê o dia nascer no jardim vizinho; belo. Talvez a televisão ajudasse, todavia não seria justo criar ruídos desnecessários. Pega seu celular e mergulha na cachoeira social. Desce pela tela a corrente de vida. O dedo move-se sozinho. A mente se infla, se cala. Sua existência é o agora por onde rola pacífica, ao sabor da correnteza; alheia.  
    Retorna à vida assustada com a batida da porta do quarto. 
    - Você fez o café?
    Sim, está quentinho.
    Os movimentos dele são rápidos. Deve estar atrasado. Atualmente, mesmo aos domingos, tem ido trabalhar. Os sons geram as imagens, pois ela não se levanta. A garrafa abrindo, a fumaça subindo enquanto o café cai no copo. Ele bebe, gole a gole, olhando pela janela o jardim vizinho. Planejando o dia. Tudo o que terá de fazer, problemas a resolver. Dedicado. Sente vontade de abraçá-lo, pedir que fique, agradecê-lo por tudo com o calor de seu corpo. Não. Não agora. Há muito na mente dele, sempre há. Quisera poder ajudar-lhe com algo além da disponibilidade. Poderia ceder tanto mais...Assustada, é retirada de seus pensamentos por um olhar atento.
    - Cuidado ao sair de casa. Caso perguntem, lembre-se de dizer que caiu e bateu em alguma coisa.
    Com o meneio do rosto ela concorda. Não é preciso mentir. A queda é longa e constante. A marca externa nada mais é que uma erupção; incontrolável.  
    Não sairei hoje.
  Pensa em perguntar sobre o horário do retorno, gostaria de planejar algo. Arrumar-se e perfumar-se para além da madrugada...Mas seria injusto, não?  Hesita e se contém. Além de ter de trabalhar tanto para sustentá-los ele ainda tem de se preocupar com o horário do retorno? Ele precisa se preocupar ainda mais com ela?
    Em suas divagações percebe que só lhe restou o vento. Ele passou apressado, bateu a porta. Ela levanta-se, ainda há tempo de uma despedida pela janela. Seu caminhar é rápido. Abre levemente a cortina, se ele olhar a verá.
    A vizinha o aguarda no jardim, o trabalho dela é no caminho do dele. Abraçam-se com um sorriso de bom dia. Lembra-se da voz de sua falecida mãe: ele é muito educado, né? Sim mamãe, é. Entram no carro e partem. Ele não olha para trás. O sol os acompanha, tão cedo.
   Sobra-lhe o vazio a pressioná-la contra a janela. Sente vontade de algo. Tem ânsia. Queria dizer, fazer... Falta-lhe uma palavra para demarcar o que está ausente e ao mesmo tempo a rodeia, comprimindo-a, ditando os limites de sua existência. Sente que há uma teste e ela foi reprovada, pois sua vida é toda pautada em terras a ela hostis; selvagens e arcaicas. Pode ser isso existir? Não sabe. Ela sabe. Não consegue dar forma ao vácuo que lhe tira o ar. Chega!, pensa.
    Ao menos respiro, portanto...vivo? Vivo.
   Há muito o que fazer. Abre a janela e o vento a toca. Sente o mar, o infinito, as possibilidades...de felicidades. Ali, no horizonte. É isso! Com os pulmões cheios dirige-se ao quarto. Tem esperança que não haja sangue no lençol e no piso.  
   

  Arte de: https://www.milesjohnstonart.com/

Segundo Epílogo

Epílogo para o nada

    Em janeiro do ano de 2019, foram acrescentadas 11 espécies à lista de animais extintos. Dentre elas a arara-azul, cuja penugem tem tom semelhante ao azul da bandeira do Brasil. Em janeiro de 2019, Evandro conheceu três garotas. Com uma passou uma noite conversando, com outra foi ao cinema em um tarde de mormaço e da terceira ele só lembra da covinha que surgia em sua bochecha esquerda quando ela sorria das piadas bobas que fazia.
    Em janeiro de 2019, Luísa começou sua nova dieta, ao término do mês engordara dois quilos. Em janeiro de 2019, recordes de temperatura foram, assim como no ano anterior, e no antes desse, e desde que começou a se anotar a quantos graus somos cozinhados, quebrados no mundo todo. Em janeiro de 2019, Adriana decidiu terminar seu relacionamento de 16 anos. Júlio não concordou e a torturou. Ele chamou sua ação de amor.   
   Em janeiro de 2019, Thiago não conseguia parar de ver programas de acidentes aéreos e começava a perceber um padrão composto de três máximas neles. Primeira, nenhuma vida perdida é em vão na aviação. Segunda, é sempre uma cadeia de eventos que leva ao desastre, não um fato isolado. E terceira, a aviação é um meio de transporte muito seguro, mas sua chance de se safar com vida, caso haja um acidente, é mínima. Ele não conseguia parar de pensar no divórcio de seus pais no silêncio daquela casa vazia.  
   Em janeiro de 2019, Beatriz saiu do emprego decidida a trabalhar em seus sonhos, até o final do ano ela estaria se prostituindo. Em janeiro de 2019, bandido bom era bandido morto a menos que usasse a bandeira do Brasil como lenço para esconder sorriso. Em janeiro de 2019, João e Elisa tiveram a primeira e única filha. Elisa sugeriu como nome para o rebento Sofia, ele aceitou. Sofia era o nome que ela e seu namorado anterior planejaram. Em janeiro de 2019, Gabriel se declarou para Rafaela, virtualmente é claro, ela o bloqueou depois de um mês, pois era incapaz de dizer que ainda o amava, mesmo depois de tê-lo traído. Em janeiro de 2019, fez 9 anos que Saramago faleceu e 5 que Gabo se foi. Em janeiro de 2019, em uma manhã equatorial fria, Jurandir se relembrou dos anos de 2004, 2007 e 2014. As mortes de sua mãe, seu irmão e seu pai. Vizinho da morte, ele aceitou a sinceridade da vida. Em janeiro de 2019, Júlio Roberto leu seis livros durante a suas férias, já que era incapaz de acessar as redes sociais por questões de saúde mental. Em janeiro de 2019, Maycon continuava a usar a data de aniversário de sua primeira namorada, de 15 anos atrás, como sua senha do cartão de crédito. A isso ele chamava tortura.    

   Em janeiro de 2019, o Sol permanecia nascendo e se pondo com todas as graças da previsibilidade e do tédio. Em janeiro de 2019, Ana Luísa olhou pela última vez nos olhos de Ricardo. Estavam abraçados quando o tiro lançou cérebro na camisa verde e amarela que usava. Em janeiro de 2019, Júlia se apaixonou duas vezes na mesma semana, somente para se apaixonar novamente na noite de sábado e amanhecer com um sorriso fora de lugar no domingo. Em janeiro de 2019, a folha lutava em manter-se em branco e Matheus teimava em preenchê-la com palavras. Ele sentia a idade chegando e a responsabilidade cobrando, por isso criou uma pasta em sua área de trabalho para colocar seus escritos. O título da pasta era 2018. Ele nunca percebeu o erro.     
   Janeiro de 2019 era mais um final, mais um início e mais um ponto ínfimo em uma linha do tempo. Janeiro de 2019 era também onde a vida de muitas pessoas transformava-se radicalmente, enquanto a de outras permanecia estagnada. Em janeiro de 2019, para alguns o otimismo era amargo, para outros, ignorante. Em janeiro de 2019, todos se voltavam para o passado. Alguns desejavam regressar 10 anos, outros 55. Em janeiro de 2019, o tempo era punição. 
   Em janeiro de 2019, este livro terminou de ser escrito. Eu estava otimista, contudo peguei-me falando sozinho, em uma manhã de sono mal dormido, que este seria o meu último ano de vida. Este era apenas o segundo epílogo que escrevera naquele mês e ambos apresentavam a mesma falha: apontavam para o fim e não terminavam nada.   





Arte de: https://www.milesjohnstonart.com/