- Aguarde aqui - ela disse para o
taxista - levará em torno de uma hora.
- A senhora não quer chamar outro táxi
depois? É que vou ter que deixar o taxímetro ligado.
- Não, espera aqui.
Sem esperar reação Lidiane seguiu seu
caminho. Era mais uma manhã de um sábado qualquer, nada em especial. Só mais
sábado que amanheceu depois da sexta-feira; de novo. A poeira de toda uma
semana se assentara na casa de Romeu, seu ex-marido, e agora era preciso
limpá-la. Eis o plano.
Lidiane mantinha os escombros do homem
amado naquela casa. Eles eram apenas namorados, nem se conheciam muito bem, mas
a morte inesperada de Romeu deixou um sentimento azedo em Lidiane. O que eles
poderiam ter sido? A morte precoce de sua única paixão, embora ela não gostasse
de pensar muito sobre isso, levara consigo um pedaço dela, a parte que sabia
viver.
Romeu fora um homem muito recluso. Aos
seus quarenta anos não tinha família ou amigos. Vivia em seu apartamento imerso
em sua biblioteca, imerso em si, mergulhado em dosinhas de uísque, como ele gostava de dizer. Lidiane o conheceu
no supermercado em que é caixa. Aquele quarentão misterioso, sempre com uma
máscara de simpatia e educação. Após meses de sorrisos lançados sem resposta,
ela se excedeu e flertou com ele de forma mais clara. Daí em diante tudo foi
rápido. Sexo, álcool e sexo: estavam namorando.
Após quase um ano de relacionamento
ela conseguira quebrar o silêncio de Romeu, sabia uma coisa ou outra da vida
dele, uma coisa ou outra de sua personalidade, uma coisa ou outra... Mas era o
suficiente. Só o que não foi suficiente foi o tempo. Ele falecera de câncer no
pulmão. Somente Lidiane velou o corpo; uma noite de silêncio para pensar no que
nunca mais seria: eles. O enterro foi simples e solitário. Ela, um buraco, um
caixão e dois funcionários da prefeitura. A senhorita soitária derramou apenas
uma lágrima, egoísta, pois sabia que enterrava com aquele homem, que mal
conhecia, uma parte de si.
O tempo passara, mas ela mantivera uma
rotina. Viúva por escolha, aos sábados ia até a casa de Romeu fazer faxina.
Manter limpo o museu, manter fresca a memória, manter viva a vida. Como quem
entra no sarcófago de si própria, ela adentrava o pequeno apartamento de seu
ex-marido, todos os sábados pela manhã, sem exceção.
O apartamento do ex-marido era
minúsculo. Um quarto, um banheiro e uma sala que era também cozinha, além de
escritório. O falecido possuía um toca discos, uma imensa coleção de LP’s e
muitos reservatórios de poeira. Muitas vezes Lidiane tentou entender a lógica
da organização das centenas de vinis, mas ainda não conseguira. Não seria hoje
o dia que desvelaria esse segredo.
Vassoura em mãos e algo de noite ainda
em seu rosto ela inicia seu papel nessa história. Sua mente flutuava baixo, tal
qual a poeira que ela movia de lugar com suas vassouradas de estimação. Acordando,
devagar, ela divagava a pensar sobre tudo isso. É isso vida? Aqui? Varrendo sem
saber porquê ? Varrer... A esta altura da vida deveria saber mais, ter menos
perguntas e mais respostas. Três décadas, trinta anos e viúva; por escolha. Mas
o que esses números diziam sobre a mulher que tirava o pó da casa de seu, para
sempre, ex-marido? Trinta anos, um período de tempo, uma vida. Minha vida? E
pensando ela sentia algo como uma percepção, inquieta, se remexer em seu
cérebro. Intrigada ela seguia as ramificações desse pensamento, descuidada, em
busca de resposta.
Tinha família, tinha amigos. Oras, não
era uma pária reclusa, feito Romeu. Seus dias exibiam pessoas que importavam e
outras que não. Simples. A dificuldade era ter de interagir com o mundo. Por
isso gostava tanto de Romeu, ele não perguntava sobre o dia de trabalho ou
sobre os problemas familiares; sobre as razões para o novo corte de cabelo ou
para a lágrima que descia sem ser chamada nos momentos pós sexo.
No aconchego do silêncio que
compartilhavam eles fizeram a morada do relacionamento, ignorando todas as
palavras desgastadas do convívio cotidiano. Eles haviam chegado a seguinte
conclusão: a mais simples das perguntas, Está
tudo bem com você?, por exemplo, sempre recebia como resposta uma mentira. Logo,
se a resposta será sempre mentirosa, por que se importar em responder? Ou
mesmo, qual a razão para perguntar?
Vamos, volte, o taxímetro estava
ligado lá fora. Ela não tinha como se perder em pensamentos pelo tempo que
quisesse enquanto sua conta com o taxista continuasse a aumentar, essa era a
sua âncora. Era adulta, e, portanto,
tinha responsabilidades. Nada de divagar por horas no apartamento do ex-marido
morto. Tudo tinha preço, e alguns ela não podia pagar. E assim recomeçava a
limpeza, agora mais objetiva.
Adulta, sim, era adulta. Mas o que era
isso? Trilho após trilho seguir criando seu caminho: trilhando? Máquina a vapor
rumo à estação desconhecida? Mas por que seguir quando, quanto mais distante se
está, mais passageiros se perde? Por que seguir se a cada passageiro que se
perde, torna-se cada vez mais leve, mais vazia? Qual o propósito de um trem de
passageiros sem passageiros?
Adulta, táxi, dinheiro.
A sala estava limpa. Sem pó nas
estantes, sem sujeira no chão. Hora de partir para o banheiro. O tempo é caro
dentro da casa. No banheiro, ao menos, não há muitas lembranças. Trabalho rápido,
ok? Pensava Lidiane, segundos antes de...
O espelho. A mais humana das
invenções. Quão falso pode ser o
reflexo? Lidiane era bela, ainda não tinha marcas claras de idade a lhe
emoldurar a face. No entanto, como poderia crer naquilo que via? Ela, que também
revirava com a vassoura cada canto de si, que sentia o cheiro ruim dos becos de
sua consciência, que tinha noção de quão horrenda fora capaz de ser; como crer
naquele reflexo; belo? A única verdade disso é a poeira que a todos cobre: eu e o
espelho. Varrer? Limpar? Desculpas para ritmar o pensamento com
realidade, para dar gaiola à melancolia. As vezes penso que, mesmo Romeu, não
passou de uma desculpa para eu existir.
Era adulta. Tinha mais respostas que
perguntas; sim! Um exemplo para sua
sobrinha, para os maios jovens. Era adulta...e mentia. Era adulta e a maturidade
nada mais era que o desenvolvimento da capacidade de falsear tudo, seja para
si, seja para o outro. Do velho da padaria à amiga mais próxima, a poeira da
mentira cobria todos os pontos de sua relação adulta com o mundo. Casar-se,
amar, viajar, conquistar sua casa, a liberdade do carro, o sucesso, filhos,
saúde, orgulho, universidade, serviço cumprido, parabéns!, a terceira idade,
netos, a melhor época e, sorrindo, cruzar as mãos sobre o peito, agradecida
pela vida e por ter tido o bom senso de se calar, de se convencer, de mentir,
de viver, feito uma adulta. Adulta! Varra! Limpe!
E a poeira subindo aos ares trazia
consigo um espirro antes de se deitar sobre um novo objeto. Nossa...acalme-se
mulher! Está se excedendo. Olha no relógio e decide. Precisa se apressar. É
quando um ruído a convoca. A campainha toca. Lidiane, intrigada, para de varrer
e vai em direção à porta. Abre a porta e um sorriso. Prontamente se abre ao
mundo externo.
- Bom dia, tudo bem? – Ela diz, agindo
por reflexo.
- Bom dia, estou bem. E a senhora? - Responde
um homem, na altura de seus 18 anos, um garoto, impecavelmente embalado em um
terno escuro. Com uma pasta na mão e um sorriso no rosto ele se convida para
entrar. Diz vir em nome dos interesses mais urgentes e importantes de Lidiane. Ela
não se questiona, deixa-o entrar. Sente-se estranhamente atraída pelo rapaz,
especialmente por seu sorriso. Vê-lo sorrir é como uma memória feliz, há muito
levada pelo tempo.
Ele senta-se à mesa da pequena cozinha
do apartamento de Romeu. Coloca sua pasta na mesa e retira um calhamaço de
papéis. Rápido e eficiente, em meio a várias folhas, localiza a que procura e guarda
o restante de volta em sua pasta.
- Senhorita Lidiane Madalena Augusta,
sente-se, por favor – Disse, pausadamente, inclinando de forma sutil o rosto e
apontado com a mão a cadeira à sua frente.
Lidiane, que estava ainda à porta,
ainda sem entender o que se passava, fez tal qual o rapaz pedira. Sentada,
agora, olhava-o intrigada. O que poderia querer com ela aquele jovem? De perto
o rosto do jovem era encantador, porém olhá-lo fixamente causava repulsa. Era
jovem em demasia, vivo por demais. Não havia uma só imperfeição em sua pele;
juventude em perfeição. Seu perfume, de flores, trazia consigo tardes perdidas
de uma infância imemoriável. Sentar-se ao lado dele era como reencontrar um
velho amigo, que se perdera nas veredas da vida. Era reconfortante.
- Senhorita Lidiane, eu poderia
chamá-la de Lidiane? – E sem esperar resposta prosseguia com seu discurso –
Lidiane, já passou por sua cabeça o bem-estar de sua família quando você vier a
faltar? Em um momento de dor, o mínimo que podemos oferecer é a tranqüilidade,
e como fazer isso quando não somos mais capazes de estar fisicamente ao lado
daqueles, que durante a vida tanto nos apoiaram e amaram? Lidiane, venho aqui em
nome da Funerária Santa Casa, oferecer-lhe nosso plano Prevenir Plus. Este plano de assistência familiar apresenta os
serviços póstumos com a melhor relação custo benefício disponíveis no mercado.
Veja bem Lidiane, em nosso plano...
O rapaz continuava a falar, soltava
palavras com tamanha elegância que hipnotizava Lidiane. Falava sobre a morte
como quem olha para o arroz, já queimado, apontando várias soluções para o
almoço. Oras, ele seria capaz de convencer alguém que o arroz não estava
queimado. Oferecia opções, lançava valores ao ar, soluções, paz e
tranqüilidade. Ele sabia do que falava, com certeza. Lidiane nada ouvia.
Mantinha-se ali por pura curiosidade de encarar aqueles olhos familiares. Era
certo, conhecia-os de outros tempos.
- Não entendi, o senhor poderia
explicar mais uma vez. - Ela dizia,
sempre que o silêncio se instaurava. E lá ia o rapaz, uma vez mais executar seu
discurso tão bem ensaiado.
No entanto, um cheiro desagradável se
infiltrava no ambiente. O leve perfume nostálgico de flores agora era escondido
por um forte odor de enxofre. Cada vez mais forte, o desprazer olfativo
competia com o prazer visual e auditivo de acompanhar aquela fala. O jovem,
notando o cheiro, resolve então ser mais direto.
- Fechamos negócio então Lidiane?
Basta que assine aqui e zelaremos pela tranqüilidade de seus entes queridos
quando o momento se apresentar.
- Sim, sim, claro. – E sem muito
refletir ela assinara, mesmo sabendo que não tinha no mundo uma só pessoa com
quem se preocupar. Sua mãe morrerá quando ela ainda era jovem, e seu pai
falecera há dois anos. Isso era a sua família. Não havia mais nada. Mas a
promessa de paz e tranqüilidade fora maior. Logo, por que não?
Tão inesperado quanto a visita do
vendedor de tranqüilidade, veio um ruído ensurdecedor. O som pareceu ressoar em
todos os órgãos de Lidiane; machucando. Antes mesmo de se perguntar o que fora
aquilo, o mundo se tornara escuridão. Pressionando seu corpo contra o chão, o
teto desabou sobre seu corpo. Um cheiro acre de mofo misturado com esgoto e uma
pressão forte em sua cabeça a levaram diretamente para o silêncio; absoluto.
Não se sabe quanto tempo se passou,
mas ele passou. Lidiane, embora ainda na escuridão, via um pequeno ponto de luz
em meio à pilha de destroços que a cobriam. Estava soterrada. Após alguns
segundos ela decide-se por agir. Com algum esforço se desvencilha dos restos de
parede e levanta. O pequeno prédio, onde antes era o apartamento de Romeu, não
existe mais. Onde ficara a bagunçada coleção de vinis de seu ex-marido jazem
agora as paredes de dois andares de entulho. Em pé, Lidiane contempla, ainda perplexa,
toda a destruição. Tranquilidade.
Ao longe, o som insistente de uma
buzina convoca a atenção de Lidiane para fora de si. É o táxi. Mas que diabos quer
comigo? Por que não vem me ajudar? Virando-se vagarosamente, Lidiane desliza
até o táxi. Essa conta deve ter ficado caríssima, pensa ela enquanto flutua em
direção ao carro amarelo.
- Vamos, hora de partir! Não agüento
mais ficar aqui. Senta aí e nos tira daqui. – Diz uma mulher, no banco de
passageiros, cujo rosto é exatamente igual ao de Lidiane.
Incapaz de compreender, Lidiane vira
seu rosto para o lado, inclinando-o levemente, na esperança que mudar a posição
do cérebro e o ângulo de visão, de alguma maneira, fosse uma atitude capaz de
ajudar os pensamentos a se organizarem e fluírem novamente. Não, não surte
efeito. Até que uma voz conhecida a
retira do momento de estagnação.
- Vai ficar parada feito uma louca aí
até quando? – Era Romeu, no banco de trás do táxi, abraçado a mulher idêntica a
Lidiane. – Vamos!
Em um sopro vívido de compreensão ela
olha para trás, para o monte de entulhos que ela limpara por meses. Virando-se
ela encara Romeu, enfrenta a sua própria imagem abraçada a ele; acessório
daquela existência. Ela era isso? Uma parte dele?
- Entre. – Ele diz uma vez mais –
Vamos.
- Não, não vamos. Você já leva consigo parte
de mim, agora é hora de eu ir sozinha com esse resto que me resta. – E assim,
virando-se em direção contrária ao táxi, ela flutuou em direção ao infinito de
possibilidades, cheia de perguntas, mas sem âncoras.
Explosão em prédio residencial mata quatro em Taubaté
Uma explosão em um apartamento matou quatro pessoas na
região da Estiva na manhã do dia 13 de julho. A polícia e os bombeiros ainda
averiguam a causa da explosão, mas indícios apontam para um vazamento de gás.
Dentre as vítimas foram identificados a dona de casa Maria Eduarda Galvão, 32, e
seu marido, o coveiro José Paulo Galvão, 37.
Outros dois corpos foram encontrados no local, mas ainda não foram
identificados. Os cadáveres foram encaminhados para o IML de Taubaté. Quem são
essas pessoas? Essa é mais uma dentre as muitas perguntas sem resposta que
envolvem este triste acidente.
Um comentário:
Tem uma certa belz perturbadora esse seu conto. Não sei se entendi, mais gostei bastante!
Continue assim menino!
Bjkas
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