Tenho beijado charutos com mais
paixão, assim concluiu ao deixar o quarto. Tinha sede, afinal, mesmo
insatisfeito, o exercício físico gerara necessidade de água. Ela em breve
acordaria desesperada, atrasada para o trabalho. A moça faz parte desta
população que se colhe em canaviais de segunda a sexta. Ele, com a cara lisa,
riria, mas por dentro. O revolucionário travesso que desliga despertadores
alheios. Rebeldia de bom garoto.
Na cozinha, a água transborda do
copo: desatenção. Sedento, bebe em galopes.
Não satisfeito enche mais um copo, e a água derrama,
pela segunda vez seguida. Perturbado, ele tenta apagar da consciência a
situação. Porém, o silêncio discursa uma pitada de angústia. E assim, o prazer
da água desperdiçada ganha tons de pesar. As paredes se aproximam, a escuridão
do par de lâmpadas fluorescentes o encara: incompetente, não consegue nem colocar
água no copo.
Não é sempre assim, em outras
madrugadas chegara a sorrir ao derramar a água do copo. Estranhas primaveras em
noite de invernos nas quais assumia que, deliberadamente queria ver a água
fluir, criando trilhas imprevistas, inconvenientes ao mundo, molhando o que
deveria permanecer seco. O copo vinha banhado em água, o toque dos dedos sentia
o molhado, pingos marcavam o chão da cozinha. Uma pequena sensação de frescor,
a água gotejava na cueca. Seus lábios aceitavam então a benção, degustando
prazerosamente. E o riso, breve, pontuava o momento que antecedia a investida
da razão. Morria então centenas de mortes, inconsciente, e aceitava a culpa
travestida de incompetência.
Volta para o quarto, mas não
dorme. O dia chega, amanhece, acordando uma vez mais a sede. Sente a presença
intrusa em seu quarto: um corpo largado sobre sua cama, babando em seu
cobertor, nu em seu espaço; quer de volta a solidão. Manhã sem fadas, com
namorada.
Com calma, coloca água no copo,
que desta vez não transborda. Um calmo, e eficiente, copo americano de água: desjejum
de deuses.
Ele bebe e tudo o que sente é
odor de baratas nos esgotos, de lixo se arrastando pelos rios, de suor do sexo
constante entre pistão e cilindro. Não há mais sede, tampouco saciedade, falta
algo. Desta vez acertara, não derramara. Porém não há troféu, sorrisos ou tapas
nas costas. A água fora posta no copo. Ao maleável foi imposta uma forma: copo,
e assim a água tornou-se invisível em sua utilidade.
E ele, que odeia alegorias pensa
que talvez sua mente se divirta criando isso, mas à visão da água não há fantasias,
tudo transparece.
Um copo cai, desabrocha em cacos.
Uma lágrima empossa. Uma mulher acorda: assustada, atrasada. Uma luz é acesa.
É hora do bom dia.
Crédito: Painel de Rafael Sica presente no extraordinário, Ordinário.
5 comentários:
Texto denso, mas ainda assim leve.
Me deu um silêncio aqui....
Mary
Bjks
O silêncio é o espaço para se pensar, pode estar no texto, entre o texto e o leitor, ou no leitor.
O melhor silêncio, em minha opinião, é o que intervala a relação entre texto e leitor.
O silêncio é o espaço para se pensar, pode estar no texto, entre o texto e o leitor, ou no leitor.
O melhor silêncio, em minha opinião, é o que intervala a relação entre texto e leitor.
Então acho que o silêncio meio q nasceu do texto, mas ficou é em mim rrsrsrsrs
Que se faça o silêncio. :)
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