Salve traça.
Fim de férias! E para a devida apreciação de vosso paladar, um breve texto amarelado, banhado em poeira. Apetitoso?
Fim de férias! E para a devida apreciação de vosso paladar, um breve texto amarelado, banhado em poeira. Apetitoso?
Último suspiro do ego
Não vou me desculpar.
O cenário é belo, infantil e
saudoso. Domingo de sol mergulhado em amanhecer povoado por esperanças. Olhos fechados; tempos infantis saltam à mente, a descrição não é difícil, mas
fazê-la dói. A imaginação, espaçosa, machuca-me com movimentos desastrados. Um
latido, um pequeno rabo balançando, uma corrida inconseqüente no quintal.
Felicidade se conjuga no passado: eu era feliz. O doutor, ou melhor, médico;
veterinário, disse que ele estava velho. Que por enquanto não sentia dores, mas
as sentiria em breve, em demasia. Sem me olhar cuspia palavras facilmente. - Não
sentirá dor alguma, procedimento simples, limpo, duas injeções: uma para dormir,
uma para morrer. Sim, morrer dormindo...Com que sonhariam os cachorros?
Feito despertador, o cheiro do
café quente me acordava, era o abraço que papai nunca me dera; bom dia sincero.
Por dezessete anos acordei com o café e o pão quente me aguardando na mesa da cozinha.
Nosso pai nunca disse que me amava, não com palavras. Não consigo dizer seu
nome, doeria demais, com esforço solto: cachorro, é o máximo. Enfim, não
passava de um animal, certo? Eu lhe dedicava amor, que em termos práticos se
resumia a prover água e ração. Carinho? Vez ou outra, quando a insistência
balançante do rabo vencia meu tédio, ganhava um afago. Eu o amava.
Foi tudo lento. Sinal após sinal,
ignorados não por não os ter percebido, apenas fingia que inexistiam.
Todas manhãs após nosso pai utilizar o banheiro, ele borrifava grande
quantidade de purificador de ar no ambiente. Sua urina, devido a forte
medicação e ao estado avançado da doença, fedia. Eu, resguardado no silêncio que cultivávamos
com carinho, não me incomodava com aquele cheiro de morte penetrando no
amanhecer familiar.
No frio vinha se enroscar comigo.
Ficava na beira da cama, olhando-me, enquanto não autorizasse a subida ficava
ali, tremendo. Cachorro pequeno, magro, mesmo embaixo da coberta, se enroscava
em meu corpo em busca de calor. Hoje o frio é todo meu.
Cento e cinqüenta reais? É meio
caro, mas vale a pena, disse o doutor. Sim, não queria vê-lo sofrer, e
analisando retrospectivamente, o preço que paguei pela vida de nosso pai fora
bem maior.
Definhar, o urologista não usou
esta palavra, era desnecessário. Hemodiálise era o tratamento indicado.
Ganha-se tempo, mas e quanto à vida? As dores seriam companheiras matinais, disse
o doutor. Quanto a isso eu sabia, o silêncio seria a única medicação receitada.
Definhar, a palavra estava no ar: a vida se esvaindo, pingo a pingo, banhando
lentamente o solo, preparando o caminho para a comunhão anunciada, à esquina. Nosso
pai, diminuto atrás da pilha de setenta e nove calendários que era sua vida,
parecia uma criança, fingia não compreender o diagnóstico; quisera eu
dissimular tão bem. Não que ele não tivesse amado, rido, e todo o resto chamado
vida. Tivera filhos, uma casa, um carro, uma mulher, enfim o pacote completo.
Fora feliz? Teria se questionado no silêncio nupcial? Teria algum dia tido a
sensação de se encontrar perdido, abandonado em uma fila rumo ao abismo? O que
teria pensando ao receber a notícia de que você nascera minha irmã? Alguns
domingos são ensolarados, noutros há tempestade, os piores repetem o cinza
diário.
Você me questionou certa vez,
olhando como se contemplasse um animal dentro de uma jaula, você entende o que
fez? Eu não, mas e você, entende o que tem feito?
Definhar? Não suporto o cantar
ansioso dos vermes. Enterrei meu cachorro. O veterinário, experiente aos vinte
e bem poucos anos, estava certo. Procedimento limpo e silencioso. O cachorro
parecia dormir, porém nunca acordaria. Com nosso pai foi mais complicado,
embora também tenha morrido dormindo. Dei ao velho um fim digno. Gosto de
fantasiar que ele sabia, afinal nossos olhos sempre conversaram aquém ao
silêncio de nossas personalidades. Antes de tomar a xícara derradeira de café,
envenenada, olhou-me longamente, sereno, superficialmente saudável, olhos
despidos dos véus da esperança. Nunca lhe levara café antes. Ele, discreto, não
indagou a estranheza do gesto. Agradeceu-me e desejou boa noite, era a
despedida. Não respondi. Que tenha sonhado a vida eterna.
O olhar de meu cachorro carregava
tristeza, ao contrário do de nosso pai. Talvez não compreendesse algo que para
nós, apoiados na racionalidade, é evidente. Antes morrer sem dor, em um sonho,
a definhar pelos cantos. Não vou dizer seu nome, ainda sinto sua ausência.
Você entende? Eu não.
Definhar.
Não há muito a explicar. Sem
palavras peregrinas, coloquei tudo no papel.O resto é com você. Ligue os parágrafos,
misture com sua memória sobre nosso pai e carimbe um sentido a sua escolha. Não
estarei aqui para contradizê-la. Sim, hoje é meu fim, mas não se engane, todos
sofremos de uma doença fatal; cedo ou tarde perceberá. Hoje tomo a medicação
derradeira para o medo de definhar. Sou incapaz de explicar além disso. Sei que
me odeia; matei seu pai. Com a sociedade paguei minha dívida, envelheci na
cadeia, mas você irmã, não vê perdão para um homem como eu. É evidente. Não a
culpo, mas sei que me culpa.
Enfim, para que não se engane com
relação a meu ato, isto nada tem a ver com você. Minhas escolhas foram feitas
do alto de meu egoísmo e medo, infantis, sim, conforme suas palavras no velório
de nosso pai. Não espero com esta carta expiar nada, ou mesmo plantar lágrimas
e remorso, não há pesar em meu fim. Isto é um pedido – enterre-me ao lado de
nosso pai.
Adeus.
"Não olho para o céu com
esperança, só espero sonhar."
Com carinho, de seu irmão, Fábio
Dias.
Créditos das imagens: Quadros de Lourenço Mutarelli presentes em "Quando meu pai se encontrou com o et fazia um dia quente."
7 comentários:
Epa Rafa, ateh q enfim...estava com sdd jah :P
Bom dia Rafael,
Gostei deste texto, vejo quem tem se desenvolvido, porém algumas coisas ainda saltam aos olhos, uns probleminhas, nada de muito grave. Falo com você pessoalmente.
Abraços fraternais,
Luis Miguel
Cada vez melhor, heim, Rafael?
Thayna, também estou com saudades! Precisando ir para sampa rever o povo.
Um grande abraço e obrigado pela presença constante.
Salve professor Luis.
Probleminhas? Os problemas são sempre muitos, a história nunca é o que queríamos, e por isso continuo escrevendo. :)
Por favor, não se preocupe, pode descer a lenha por aqui mesmo, não há problema algum.
Obrigado pelo comentário.
Salve Cimatti!
Sei não se estou melhorando, mas vamos tentando né?
Um abraço e obrigado pelo comentário.
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