Salve traça!
Hoje posto a continuação de Ninguém sonha nas tarde de domingo, logo, ler a primeira parte seria interessante, mas não é necessário. Este conto é o outro lado do espelho da história de Ortiz Demóstenes Júnior.
Fique à vontade para devorar estes bits velhos e sujos.
Ninguém sonha nas tarde de domingo - Parte II
O
gênio: tá aí uma invenção que o João Carvalho Folha sempre quis comprar. Sua
escrita, assim como sua vida, era metódica. Horas e mais horas repetindo ideias
em frente ao computador. Página após página e nenhum parágrafo de inspiração.
Publicara mais de vinte livros, porém seu nome não enfeitava a capa de nenhuma
de suas criações. Ele é um escritor fantasma, no bom português, escreve livros para outros levarem o crédito. Seu trabalho é diário, às vezes interrompido por
algumas intempéries da vida familiar, nada além do comum.
- Papai! Papai! Olha o desenho que eu fiz.
-
Maria Cláudia, o que está fazendo? Está dormindo querida? Não pagamos você para
ficar plantada assistindo novela. Levanta sua bunda do sofá e dá um jeito na
Estéfanie, ela está atrapalhando o Carvalho, estou escutando daqui. Vamos mulher! – A voz estridente
da esposa do Carvalho Folha era o chicote da casa.
A
empregada, desengonçada pelo sono, entra apressada no escritório, a tempo de ver
o patrão prometendo a filha uma visita ao McDonalds mais tarde, assim que
terminar as trinta páginas da meta diária. Rapidamente a serviçal se abaixa
para tomar o projetinho de patroa nos braços. Carvalho Folha, sem disfarçar,
encara a beleza mal contida que salta do decote da mulher. Seios negros e mal
envelhecidos, flácidos, porém atraentes devido a seu caráter não rotineiro.
Maria Cláudia ignora os olhares do patrão, como sempre fizera, e parte com
Estéfanie no colo. A empregada nunca lhe
dirigira um sorriso ou olhar de reprimenda, simplesmente ignorava o homem que
habitava aqueles cento e vinte quilos de história de vida.
Sozinho,
ele volta a atenção ao computador, às letras, ao trabalho. - Oras Carvalho,
esqueça-a, você pode pagar coisa melhor. - No entanto o desenho anormalmente incomum
dos seios de Maria Cláudia não saía de sua cabeça. Só havia uma solução,
pensou. Feito adolescente, a visita ao banheiro se fez necessária. Nunca
encontrara uma mulher como a empregada, e há tempos procurava. Nos prostíbulos
que frequentava só havia modelos, mulheres de plástico. Todas tinham futuro:
estudantes promissoras com planos e carreiras, de administradoras a engenheiras
de alimentos, sem esquecer das psicólogas e fisioterapeutas, não
faziam, o estilo empregada. Buscara também nas ruas, porém a noite ao relento
não faz bem à velha profissão, e, seguindo a escala evolutiva das putas, eram
todas muito feias, arruinadas pelas drogas e maus tratos, mesmo se comparadas
com a quarentona estragada que era Maria Claudia, eram horrendas. Enfim, sua pretinha era
única, mas não queria dar para ele, eis o problema. De qualquer maneira, o
corpo sempre vence e para as fantasias de João Carvalho Folha, 42, somente
restava a boa e velha bronha.
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Imagem criada pela imaginação do Carvalhinho. |
Após
cinco minutos retorna do banheiro. Uma vez aliviados os espíritos do corpo,
hora do trabalho. O monitor estava forrado de palavras. As letras se juntavam
feito formigas, eficazes em realizar, inconscientes, o programa da natureza.
Neste trabalho específico Carvalho Folha se fazia passar por um padre, um
grande nome da geração de sacerdotes pop-star. O livro tratava da troca de
correspondências entre o vigário e um figurão, secretário da educação do
estado. Para dar maior veracidade aos personagens, escrevera primeiro todas as
cartas do padre. Passara então um mês em NY, como recompensa, e agora se
dedicava as cartas do educador. Constantemente tinha de fazer breves alterações
nas cartas do padre, de maneira a propiciar um diálogo mais coerente, porém
nada de muito complexo, qualquer porcaria edificante tratando de educação e
religião servia. O público alvo destas obras reconhecidamente não manifestava
um crivo crítico apurado, ainda mais quando se tratava das palavras de algum
ídolo.
Abuse
do verbo “é”, diga as pessoas A verdade.
Isso é assim. Isso é bom... Você sabe como fazer. Diga-lhes o que fazer quando
alguém morre ou quando o filho entra no mundo das drogas, estas baboseiras.
Esperanças e tal... Dê respostas, e por mais estúpidas que elas possam parecer,
as pessoas tomaram como sabedoria. –
Tais foram todas as indicações que seu editor lhe dera a respeito deste trabalho;
mais que o suficiente. Carvalho Folha tinha muita experiência, e neste ramo,
isso é muito precioso.
No
entanto, para quem tem uma meta diária de trinta páginas, normalmente escritas
em cinco horas, as parvas duas páginas feitas até então eram um fracasso.
Atividades manuais, pensou, libertar a mente da necessidade. Hora de lavar o
carro.
Leve,
Carvalho Folha acariciava as curvas do carro com um pano, limpando. Foi quando
o filho do Ortiz surgiu. Caminhava cabisbaixo, sujo, provavelmente mais uma
noite de boemia. Sem inveja, aparente, o cumprimentou. Simpático como sempre, o
jovem retribuiu o aceno e o sorriso.
Sempre
mal vestido, sempre bêbado, sempre a pé. Que vida! Não tem filhos e nem é casado.
A herança do pai é seu ticket de VIP na vida. Sua passagem está paga e ele só
vai aproveitar a vista. Se eu fosse assim, tivesse essa oportunidade, e talvez,
enfim pudesse me dedicar a ser um escritor de verdade. Daqueles que tem seu
próprio nome a abraçar suas palavras, em uma bela e ornamentada capa. Uma
daquelas pessoas que dizem algo, e não simplesmente vomitam filosofias furadas
na boca de subnutridos. Quisera escrever algo além de vômito em conserva. Já
sei, vou escrever sobre o Ortizinho, farei dele meu personagem. Isso! Será um
escritor que batalha frente à vida esvaziada de sentido pela sociedade
capitalista. Contarei seus amores, suas noites...Ele, antena da raça! Sua
martirização frente a arte como comércio...Assim pensava Carvalho Folha,
perdendo-se em ideias e possibilidades.
E
João Carvalho Folha sorria. Seu sorriso se transformou em gargalhadas enquanto limpava o para-brisa à prova de balas. Seu reflexo revelava gordura balançando por toda parte, riu mais.
Sim,
escreva sobre um escritor e faça arte! Descreva o processo de criação, o
sacrifício imposto às pessoas com um pouco mais de sensibilidade. Escreva sobre
um escritor, nunca o fizeram. Fale das incapacidades da linguagem, do silêncio
frente ao inominável. Será respeitado, medalhão da cultura nacional. Suas obras
completas em acabamento de luxo, enfeitando estantes de um futuro distante.
Carvalho Folha, celebrado por meia dúzia de intelectuais, premiado com a
imortalidade, porém sem dinheiro para uma boquete com a puta mais suja da
cidade. Isso Carvalhinho, você pode escrever, mas entenda que aqueles que
escreviam em pé morreram de deitados, na sarjeta.
O
carro estava limpo, a mente tivera sua pitada de imaginação liberta. Com um
último sorriso no rosto João Carvalho Folha retornou a sua casa, sabia que
agora conseguiria escrever as vinte oito páginas que faltavam para alcançar a
meta diária. A tarde de domingo se mostrava promissora, porém algo fazia de sua
cabeça nuvens. Com um suspiro concluiu, sem determinação: chega de sonhar.
Crédito da imagem: painel de Robert Crumb em
Meus problemas com as mulheres.